Diferenças entre a ciência antiga e a moderna
Quando apresentamos os ideais de
cientificidade, dissemos que tanto o ideal racionalista quanto o empirista se
iniciaram com os gregos. Isso, porém, não significa que a concepção antiga e a
moderna (século XVII) de ciência sejam idênticas.
Tomemos um exemplo que nos ajude
a perceber algumas das diferenças entre antigos e modernos.
Aristóteles escreveu uma Física. O objeto físico ou natural, diz
Aristóteles, possui duas características principais: em primeiro lugar, existe
e opera independentemente da presença, da vontade e da ação humanas; em segundo
lugar, é um ser em movimento, isto é, em devir, sofrendo alterações
qualitativas, quantitativas e locais; nasce, vive e morre ou desaparece. A Física estuda, portanto, os seres
naturais submetidos à mudança.
O mundo, escreve Aristóteles,
divide-se em duas grandes regiões naturais, cuja diferença é dada pelo tipo de
substância, de matéria e de forma dos seres de cada uma delas. A região
celeste, formada de Sete Céus ou Sete Esferas, onde estão os astros, tem como
substância o éter, matéria sutil e
diáfana, forma universal que não sofre mudanças qualitativas nem quantitativas,
mas apenas a mudança ou movimento local, realizando eternamente o mais perfeito
dos movimentos, o circular. A segunda região é a sublunar ou terrestre - nosso
mundo -, constituída por quatro substâncias ou elementos – terra, água, ar e
fogo -, de cujas combinações surgem todos os seres. São substâncias fortemente
materiais e, portanto (como vimos no estudo da metafísica aristotélica),
fortemente potenciais ou virtuais, transformando-se sem cessar. A região
sublunar é o mundo das mudanças de forma, ou da passagem contínua de uma forma
a outra, para atualizar o que está em potência na matéria.
Os seres físicos não se movem da
mesma maneira (não se transformam nem se deslocam da mesma maneira). Seus
movimentos e mudanças dependem da qualidade de suas matérias e da quantidade em
que cada um dos quatro elementos materiais existe combinado com os outros num
corpo.
Deixemos de lado todas as
modalidades de movimentos estudadas por Aristóteles e examinemos apenas uma: o
movimento local. Os corpos, diz o filósofo, procuram atualizar suas potências
materiais, atualizando-se em formas diferentes. Cada modalidade de matéria
realiza sua forma perfeita de maneira diferente das outras.
No caso do movimento local, a
matéria define lugares naturais,
isto é, locais onde ela se atualiza ou se realiza melhor do que em outros.
Assim, os corpos pesados (nos quais predomina o elemento terra) têm como lugar
natural o centro da Terra e por isso o movimento local natural dos pesados é a
queda. Os corpos leves (nos quais predomina o elemento fogo) têm como lugar
natural o céu e por isso seu movimento local natural é subir. Os corpos não
inteiramente leves (nos quais predomina o elemento ar) buscam seu lugar natural
no espaço rarefeito e por isso seu movimento local natural é flutuar. Enfim, os
corpos não totalmente pesados (nos quais predomina o elemento água) buscam seu
lugar natural no líquido e por isso seu movimento local natural é boiar nas
águas.
Além dos movimentos naturais, os
corpos podem ser submetidos a movimentos violentos, isto é, àqueles que
contrariam sua natureza e os impedem de alcançar seu lugar natural. Por
exemplo, quando o arqueiro lança uma flecha, imprime nela um movimento
violento, pois força-a a permanecer no ar, embora seu lugar natural seja a
terra e seu movimento natural seja a queda.
Este pequeno resumo da Física aristotélica nos mostra algumas
características marcantes da ciência antiga:
● é uma ciência baseada nas qualidades percebidas nos corpos (leve, pesado,
líquido, sólido, etc.);
● é uma ciência baseada em distinções qualitativas do espaço (alto, baixo,
longe, perto, celeste, sublunar);
● é uma ciência baseada na metafísica da identidade e da mudança (perfeição
imóvel, imperfeição móvel);
● é uma ciência que estabelece leis diferentes para os corpos segundo sua
matéria e sua forma, ou segundo sua substância;
● como conseqüência das características anteriores, é uma ciência que
concebe a realidade natural como um modelo hierárquico no qual os seres possuem
um lugar natural de acordo com sua perfeição, hierarquizando-se em graus que
vão dos inferiores aos superiores.
Quando comparamos a física de Aristóteles com a moderna, isto é, a que foi
elaborada por Galileu e Newton,
podemos notar as grandes diferenças:
● para a física moderna, o espaço é aquele definido pela geometria,
portanto, homogêneo, sem distinções qualitativas entre alto, baixo, frente,
atrás, longe, perto. É um espaço onde todos os pontos são reversíveis ou
equivalentes, de modo que não há “lugares naturais” qualitativamente
diferenciados;
● os objetos físicos investigados pelo cientista começam por ser
purificados de todas as qualidades sensoriais – cor, tamanho, odor, peso,
matéria, forma, líquido, sólido, leve, grande, pequeno, etc. -, isto é, de
todas as qualidades sensíveis, porque estas são meramente subjetivas. O objeto
é definido por propriedades objetivas gerais, válidas para todos os seres
físicos: massa, volume, figura. Torna-se irrelevante o tipo de matéria, de
forma ou de substância de um corpo, pois todos se comportam fisicamente da
mesma maneira. Torna-se inútil a distinção entre um mundo celeste e um mundo
sublunar, pois astros e corpos terrestres obedecem às mesmas leis universais da
física;
● a física estuda o movimento não como alteração qualitativa e quantitativa
dos corpos, mas como deslocamento espacial que altera a massa, o volume e a
velocidade dos corpos. O movimento e o repouso são as propriedades físicas
objetivas de todos os corpos da Natureza e todos eles obedecem às mesmas leis –
aquelas que Galileu formulou com
base no princípio da inércia (um corpo se mantém em movimento indefinidamente,
a menos que encontre um outro que lhe faça obstáculo ou que o desvie de seu
trajeto); e aquelas formuladas por Newton, com base no princípio universal da
gravitação (a toda ação corresponde uma reação que lhe é igual e contrária).
Não há diferença entre movimento natural e movimento violento, pois todo e
qualquer movimento obedece às mesmas leis;
● a Natureza é um complexo de corpos formados por proporções diferentes de
movimento e de repouso, articulados por relações de causa e efeito, sem
finalidade, pois a idéia de finalidade só existe para os seres humanos dotados
de razão e vontade. Os corpos não se movem, portanto, em busca de perfeição,
mas porque a causa eficiente do movimento os faz moverem-se. A física é uma
mecânica universal.
A física da Natureza se torna geométrica, experimental, quantitativa,
causal ou mecânica (relações entre a causa eficiente e seus efeitos) e suas
leis têm valor universal, independentemente das qualidades sensíveis das
coisas. Terra, mar e ar obedecem às mesmas leis naturais. A Natureza é a mesma
em toda parte e para todos os seres, não existindo hierarquias ou graus de
imperfeição-perfeição, inferioridade-superioridade.
Há, ainda, uma outra diferença profunda entre a ciência antiga e a moderna.
A primeira era uma ciência teorética, isto é, apenas contemplava os seres
naturais, sem jamais imaginar intervir neles ou sobre eles. A técnica era um
saber empírico, ligado a práticas necessárias à vida e nada tinha a oferecer à
ciência nem a receber dela. Numa sociedade escravista, que deixava tarefas,
trabalhos e serviços aos escravos, a técnica era vista como uma forma menor de
conhecimento.
Duas afirmações mostram a diferença dos modernos em relação aos antigos: a
afirmação do filósofo inglês Francis Bacon, para quem “saber é poder”, e a
afirmação de Descartes, para quem “a ciência deve tornar-nos senhores da
Natureza”. A ciência moderna nasce vinculada à idéia de intervir na Natureza,
de conhecê-la para apropriar-se dela, para controlá-la e dominá-la. A ciência
não é apenas contemplação da verdade, mas é sobretudo o exercício do poderio
humano sobre a Natureza. Numa sociedade em que o capitalismo está surgindo e,
para acumular o capital, deve ampliar a capacidade do trabalho humano para
modificar e explorar a Natureza, a nova ciência será inseparável da técnica.
Na verdade, é mais correto falar em tecnologia
do que em técnica. De fato, a
técnica é um conhecimento empírico, que, graças à observação, elabora um
conjunto de receitas e práticas para agir sobre as coisas. A tecnologia, porém,
é um saber teórico que se aplica praticamente.
Por exemplo, um relógio de sol é um objeto técnico que serve para marcar
horas seguindo o movimento solar no céu. Um cronômetro, porém, é um objeto
tecnológico: por um lado, sua construção pressupõe conhecimentos teóricos sobre
as leis do movimento (as leis do pêndulo) e, por outro lado, seu uso altera a
percepção empírica e comum dos objetos, pois serve para medir aquilo que nossa
percepção não consegue perceber. Uma lente de aumento é um objeto técnico, mas
o telescópio e o microscópio são objetos tecnológicos, pois sua construção
pressupõe o conhecimento das leis científicas definidas pela óptica. Em outras
palavras, um objeto é tecnológico quando sua construção pressupõe um saber
científico e quando seu uso interfere nos resultados das pesquisas científicas.
A ciência moderna tornou-se inseparável da tecnologia.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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