"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Acaso ou indeterminação


A física contemporânea, no entanto, trouxe de volta o acaso. Entre os vários estudos e várias teorias contemporâneas, vamos mencionar apenas três aspectos com os quais podemos perceber como e por que o acaso ressurgiu nas ciências naturais.
O pleno funcionamento do princípio da razão suficiente ou da causalidade e do determinismo universal exige que seja mantida a ideia de substância, isto é, de uma realidade que permaneça idêntica a si mesma, seja causa de alguma coisa e efeito de alguma outra. Essa realidade pode ser uma matéria, uma energia, uma massa, um volume, mas tem que ser alguma coisa com propriedades determináveis, constantes e que possam ser conhecidas. Deve ser uma quantidade constante e/ou uma forma constante. Ora, a microfísica ou física quântica veio mostrar que não há nem uma coisa nem outra.  

O estudo do átomo de hidrogênio revelou que a quantidade de matéria ou massa não permanece constante, mas transforma-se em energia, e esta também não permanece constante, mas, o que é pior, não se transforma em coisa alguma: simplesmente se perde, desaparece, não se sabe para onde foi, nem o que lhe aconteceu. A quantidade, portanto, não permanece constante.
Ao mesmo tempo, o estudo dos átomos revelou que, dependendo da aparelhagem tecnológica usada, um corpúsculo é o que pode ser visto, mas, com outros aparelhos, em lugar de um corpúsculo, vê-se uma onda. Com isso, uma mesma realidade ou substância tanto pode ter a forma de algo que se estende no espaço (onda), quanto a de um ponto que se concentra no espaço (corpúsculo), não tendo, portanto, forma constante.
Se quantidade e forma perdem a constância, a regularidade e a freqüência, como continuar falando em causas e efeitos?
Um segundo caso, que abalou a física e ficou conhecido com o nome de princípio de incerteza ou de indeterminação, foi trazido pelos estudos do físico Heisenberg ao descobrir que, no nível atômico, como conseqüência dos dois fatos que apontamos acima, conhecer o estado ou a situação atual de um fenômeno, ou um conjunto de fatos, não permite prever a situação ou o estado seguinte, nem, portanto, descobrir qual foi a situação ou o estado anterior.
O determinismo baseava-se no pressuposto de que o conhecimento físico causal exige que um fenômeno físico deva ser conhecido a partir de dois critérios simultâneos: suas propriedades geométricas (forma, figura, volume, grandeza, posição) e suas propriedades físicas ou dinâmicas (velocidade, movimento, repouso). Heisenberg descobriu que, quando conhecemos perfeitamente as propriedades geométricas de um átomo, não conseguimos conhecer suas propriedades físicas dinâmicas e vice-versa, sendo impossível determinar o estado passado e o estado futuro do fenômeno estudado, isto é, suas causas e seus efeitos.
Em outras palavras, quando se conhece a posição, não se consegue conhecer a velocidade, e quando esta é conhecida, não se consegue conhecer a posição de um corpúsculo. Há, portanto, incerteza, indeterminação do fenômeno. A microfísica é incapaz de determinar a trajetória de corpúsculos individuais.
O terceiro acontecimento que abalou o determinismo universal foi a teoria da relatividade, elaborada por Einstein. O abalo foi duplo.
Em primeiro lugar, como vimos, a ciência moderna organizou-se graças à separação entre o subjetivo e o objetivo, propondo uma ideia de observação-experimentação em que o fenômeno observado será sempre o mesmo e obedecerá às mesmas leis, seja quem for o sujeito observador.
Ora, Einstein demonstrou que o tempo é a quarta dimensão do espaço e que, na velocidade da luz, o espaço “encurva-se”, “dilata-se”, “contrai-se” de tal modo que afeta o tempo. Assim, alguém que estivesse na velocidade da luz atravessaria num tempo mínimo um espaço imenso, mas o que ficassem abaixo daquela velocidade sentiriam o tempo escoar lentamente ou “normalmente”. Para a primeira pessoa, teriam se passado algumas horas ou dias, mas para outros, meses, anos, séculos.
Dessa maneira, Einstein demonstrou que nossa física é tal como é porque depende da observação do observador ou do sujeito do conhecimento, isto é, um sujeito do conhecimento marciano ou venusiano produzirá uma física completamente diferente da nossa, porque o espaço é relativo ao observador. Assim sendo, nossa ciência da Natureza não é universal e necessária em si mesma, mas exprime o ponto de vista do sujeito do conhecimento terrestre.
O segundo abalo provocado por Einstein refere-se à própria ideia de teoria científica da Natureza.
Uma teoria científica, como vimos, é uma explicação global para um conjunto de fatos naturais aparentemente diferentes, mas, na realidade, submetidos às mesmas leis e aos mesmos princípios. É isso que permite, por exemplo, falar na teoria universal da gravitação, formulada por Newton, válida para os movimentos de todos os corpos do Universo, sejam eles grandes ou pequenos, leves ou pesados, celestes ou terrestres, aquáticos ou aéreos, coloridos ou sem cor, saborosos ou sem sabor, etc.
Também a ideia de teoria nos permite falar na teoria universal da relatividade, elaborada por Einstein. Que diz ela? Que a medida da velocidade do movimento, seja este qual for, é a velocidade da luz; que, nesta velocidade, toda matéria se transforma em energia, deixando, portanto, de possuir massa e volume. Do ponto de vista da velocidade da luz, a teoria da gravitação universal, baseada na relação entre movimento, massa, tempo e velocidade, não tem valor, embora continue verdadeira para os movimentos que não sejam medidos pela velocidade da luz. Mas não é só isso. Do ponto de vista da velocidade da luz, todo movimento é relativo, isto é, não há como distinguir observador e observado (fenômeno que experimentamos em nossa vida cotidiana, quando, estando numa estação ferroviária, num trem imóvel, vemos outro, paralelo ao nosso, mover-se, e temos a impressão de que é nosso trem que está em movimento; ou quando, olhando um rio veloz do alto de uma ponte, temos a impressão de que é a ponte que se move e não o rio).
Qual o problema? A existência de três teorias físicas simultâneas – a quântica, para os átomos; a newtoniana, para os corpos visíveis; a da relatividade, para o movimento na velocidade da luz -, regidas por conceitos e métodos diferentes, excluindo-se umas às outras e todas elas verdadeiras para os fenômenos que explicam. E mais: a física quântica desfaz a ideia de causa como quantidade e forma constantes; e a física da relatividade desfaz a ideia clássica da objetividade como separação entre sujeito e objeto do conhecimento, base da ciência moderna. Em lugar de um único paradigma científico, a física nos oferece três!


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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