"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Necessidade e acaso


A ciência da Natureza, desde seus inícios gregos, sempre afirmou que a Natureza segue leis naturais racionais e necessárias, isto é, sempre negou que houvesse acaso ou contingência no mundo natural.
O acaso sempre foi colocado sob duas espécies de fatos: ou fatos cuja causa ainda permanece desconhecida, mas virá a ser conhecida (portanto, o acaso é apenas uma forma de ignorância); ou acontecimentos individuais, como, por exemplo, um vaso que cai sobre a cabeça de um passante (portanto, o acaso é apenas uma ocorrência singular que não afeta as leis universais da Natureza).  

No século XIX, a afirmação da universalidade e da necessidade plena que governam as relações causais da Natureza levaram ao conceito de determinismo. O determinismo pode ser resumido da seguinte maneira:
● dado um fenômeno, sempre será possível determinar sua causa necessária;
● conhecido o estado atual de um conjunto de fatos, sempre será possível conhecer o estado subseqüente, que será seu efeito necessário. Em outras palavras, o determinismo afirma que podemos conhecer as causas de um fenômeno atual (isto é, o estado anterior de um conjunto de fatos) e os efeitos de um fenômeno atual (isto é, o estado posterior de um conjunto de fatos).
A formulação do determinismo como princípio universal e como uma doutrina sobre a Natureza foi feita, pela primeira vez, pelo astrônomo e físico Laplace, que escreveu:

Devemos considerar o estado presente do Universo como efeito de seu estado passado e como causa daquilo que virá a seguir. Uma inteligência que, num único instante, pudesse conhecer todas as forças existentes na Natureza e as posições de todos os seres que nela existem poderia apresentar numa única fórmula uma lei que englobaria todos os movimentos do Universo, desde os maiores até os mínimos e invisíveis. Para ela, nada seria incerto e, aos seus olhos, o passado, o futuro e o presente seriam um único e só tempo.

O determinismo universal é, assim, a afirmação do princípio da razão suficiente, ou da causalidade, e da ideia de previsibilidade absoluta dos fenômenos naturais. As leis exprimem essa causalidade e essa previsibilidade e, por isso, não existe acaso no Universo.
Evidentemente, o cientista admitia que, para nós, seres humanos que não podemos conhecer de uma só vez a totalidade do real, existia o acaso. Caminhando por uma rua, para ir ao mercado, posso passar sob uma janela, da qual despenca um vaso, que cai sobre minha cabeça e, em vez de ir ao mercado, vou parar num hospital. Foi um acaso.
No entanto, para esse cientista, minha ida pela rua é necessária do ponto de vista da anatomia e da fisiologia de meu corpo; passar por uma rua determinada é necessário se, por exemplo, ficar estabelecido geométrica e geograficamente que é o trajeto mais simples e mais rápido para chegar ao mercado; pela posição do vaso na janela, pelo vento ou pelo toque de alguma coisa nele, é necessário, segundo a lei universal da gravitação, que ele caia. O que é o acaso? O encontro fortuito de séries de acontecimentos independentes, cada uma delas perfeitamente necessária e causal em si mesma.
Uma outra situação em que se falava de acaso refere-se aos chamados “jogos de azar”, como cara-e-coroa, roleta, certos jogos de cartas, o jogo de dados. Ora, dizia o cientista, aqui também não há propriamente acaso. Desde o século XVII, com pensadores como Pascal, Leibniz, Newton e, posteriormente, Fermat, conhecemos os estudos matemáticos chamados cálculo de probabilidades. Em cada um desses “jogos de azar”, considerando o número de objetos (uma moeda, dois dados, vinte cartas, etc.), o número de jogadores e o número de partidas, é possível calcular todos os resultados possíveis e quais são as probabilidades maiores e menores de cada resultado. Para um computador, por exemplo, não haverá acaso algum, mas determinismo completo.
A ideia de necessidade probabilística ou estatística tornou-se um instrumento teórico de grande importância para aqueles ramos das ciências naturais que lidam com fatos complexos, como, por exemplo, o estudo dos gases, pela química, pois, nesse caso, o número de moléculas é quase ilimitado e as relações de causa e efeito só podem ser estabelecidas estatisticamente, pelo cálculo de probabilidades. As leis assim obtidas são conhecidas com o nome de leis dos grandes números e se exprimem em gráficos, curvas, relações entre funções e variáveis, médias. Com essas leis, o acaso estava excluído e os dois princípios do determinismo estavam mantidos, ainda que, no caso dos fenômenos microscópicos altamente complexos, a noção de causa tivesse sido substituída pela de freqüência estatística.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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