Necessidade e acaso
A ciência da Natureza, desde seus inícios gregos, sempre afirmou que a
Natureza segue leis naturais racionais e necessárias, isto é, sempre negou que
houvesse acaso ou contingência no mundo natural.
O acaso sempre foi colocado sob duas espécies de fatos: ou fatos cuja causa
ainda permanece desconhecida, mas virá a ser conhecida (portanto, o acaso é
apenas uma forma de ignorância); ou acontecimentos individuais, como, por
exemplo, um vaso que cai sobre a cabeça de um passante (portanto, o acaso é
apenas uma ocorrência singular que não afeta as leis universais da Natureza).
No século XIX, a afirmação da universalidade e da necessidade plena que
governam as relações causais da Natureza levaram ao conceito de determinismo. O determinismo pode ser
resumido da seguinte maneira:
● dado um fenômeno, sempre será possível determinar sua causa necessária;
● conhecido o estado atual de um conjunto de fatos, sempre será possível
conhecer o estado subseqüente, que será seu efeito necessário. Em outras
palavras, o determinismo afirma que podemos conhecer as causas de um fenômeno
atual (isto é, o estado anterior de um conjunto de fatos) e os efeitos de um
fenômeno atual (isto é, o estado posterior de um conjunto de fatos).
A formulação do determinismo como princípio universal e como uma doutrina
sobre a Natureza foi feita, pela primeira vez, pelo astrônomo e físico Laplace,
que escreveu:
Devemos considerar o estado presente do Universo como efeito de seu estado
passado e como causa daquilo que virá a seguir. Uma inteligência que, num único
instante, pudesse conhecer todas as forças existentes na Natureza e as posições
de todos os seres que nela existem poderia apresentar numa única fórmula uma
lei que englobaria todos os movimentos do Universo, desde os maiores até os
mínimos e invisíveis. Para ela, nada seria incerto e, aos seus olhos, o
passado, o futuro e o presente seriam um único e só tempo.
O determinismo universal é, assim, a afirmação do princípio da razão
suficiente, ou da causalidade, e da ideia de previsibilidade absoluta dos
fenômenos naturais. As leis exprimem essa causalidade e essa previsibilidade e,
por isso, não existe acaso no Universo.
Evidentemente, o cientista admitia que, para nós, seres humanos que não
podemos conhecer de uma só vez a totalidade do real, existia o acaso.
Caminhando por uma rua, para ir ao mercado, posso passar sob uma janela, da
qual despenca um vaso, que cai sobre minha cabeça e, em vez de ir ao mercado,
vou parar num hospital. Foi um acaso.
No entanto, para esse cientista, minha ida pela rua é necessária do ponto
de vista da anatomia e da fisiologia de meu corpo; passar por uma rua
determinada é necessário se, por exemplo, ficar estabelecido geométrica e
geograficamente que é o trajeto mais simples e mais rápido para chegar ao
mercado; pela posição do vaso na janela, pelo vento ou pelo toque de alguma
coisa nele, é necessário, segundo a lei universal da gravitação, que ele caia.
O que é o acaso? O encontro fortuito de séries de acontecimentos independentes,
cada uma delas perfeitamente necessária e causal em si mesma.
Uma outra situação em que se falava de acaso refere-se aos chamados “jogos
de azar”, como cara-e-coroa, roleta, certos jogos de cartas, o jogo de dados.
Ora, dizia o cientista, aqui também não há propriamente acaso. Desde o século
XVII, com pensadores como Pascal, Leibniz, Newton e, posteriormente, Fermat,
conhecemos os estudos matemáticos chamados cálculo
de probabilidades. Em cada um desses “jogos de azar”, considerando o número
de objetos (uma moeda, dois dados, vinte cartas, etc.), o número de jogadores e
o número de partidas, é possível calcular todos os resultados possíveis e quais
são as probabilidades maiores e menores de cada resultado. Para um computador,
por exemplo, não haverá acaso algum, mas determinismo completo.
A ideia de necessidade probabilística ou estatística tornou-se um
instrumento teórico de grande importância para aqueles ramos das ciências
naturais que lidam com fatos complexos, como, por exemplo, o estudo dos gases,
pela química, pois, nesse caso, o número de moléculas é quase ilimitado e as
relações de causa e efeito só podem ser estabelecidas estatisticamente, pelo
cálculo de probabilidades. As leis assim obtidas são conhecidas com o nome de leis dos grandes números e se exprimem
em gráficos, curvas, relações entre funções e variáveis, médias. Com essas
leis, o acaso estava excluído e os dois princípios do determinismo estavam
mantidos, ainda que, no caso dos fenômenos microscópicos altamente complexos, a
noção de causa tivesse sido substituída pela de freqüência estatística.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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