"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Finalidade, evolução e origem da vida


Uma disputa atravessou a história das ciências biológicas e pode ser assim formulada: É a vida de mesma natureza que os demais fenômenos físico-químicos e está, como eles, submetida ao determinismo das causas e efeitos, ou é um fenômeno totalmente diferente, com suas leis próprias? A primeira tendência chama-se mecanicismo; a segunda, vitalismo.
O vitalismo tendeu a ser vitorioso por invocar dois fenômenos que só existem para os seres vivos: a relação com o tempo (diferença entre vida e morte) e a finalidade (a vida é um processo ativo de interação com o meio ambiente para a realização de fins como conservação, reprodução, reparação).  

O vitalismo é filosoficamente problemático. De fato, durante muitos séculos, para explicar a temporalidade e a finalidade dos fenômenos vitais, afirmou-se a existência, nos corpos vivos, de almas ou inteligências, que dirigiriam racionalmente a vida. Mesmo afastando essas idéias, a finalidade não se torna um conceito cientificamente claro. Por exemplo, devemos dizer que é para poder voar (finalidade) que os pássaros desenvolvem a forma ovoide de tronco, a estrutura de ossos leves e ocos, a leveza do pescoço e da cabeça, a disposição das penas nas asas, ou, ao contrário, que é por haver desenvolvido essas características que, com o passar do tempo, os pássaros puderam voar?
Os embaraços para definir com clareza o que seja a finalidade repercute numa outra ideia da biologia: a de evolução. A vida, por ser interação ativa com o meio ambiente, leva a mudanças nos organismos para a adaptação dos indivíduos e a manutenção da espécie. Como essas transformações ocorrem no tempo e como se considera que os organismos “progridem” ou “melhoram o desempenho” graças à invenção de mecanismos novos de adaptação, fala-se em evolução. A finalidade da evolução é a preservação da espécie. Surge, então, a pergunta: O que leva a vida à finalidade evolutiva?
Essa pergunta é difícil de ser respondida, porque a ideia de evolução se refere às espécies (não aos indivíduos) e pressupõe a noção de hereditariedade, isto é, transmissão dos caracteres adquiridos por evolução a todos os membros da espécie. Com a ideia de evolução das espécies e hereditariedade dos caracteres adquiridos, surgem novas indagações:
● se a evolução não é do indivíduo e sim da espécie, porém, se são os indivíduos que são levados a se transformar para se adaptar, o que é uma espécie?
● se a espécie evolui, mas se o faz transmitindo as estruturas hereditárias, o que podem ser as leis de hereditariedade, já que uma espécie pode mudar?
● se há leis de hereditariedade e se há mutação das espécies, como se relacionam a finalidade hereditária e a finalidade evolutiva?
● se o organismo vivo é, como dizem a bioquímica e a genética contemporâneas, uma máquina que se constrói a si mesma e dá a si mesma sua finalidade, o que significa a ideia de adaptação ao meio, central na teoria da evolução?
Questões como essas não invalidam a biologia como ciência, pelo contrário, indicam que esta não é um conjunto de verdades acabadas e absolutas, mas um processo de conhecimento. Por isso, a biologia também possui suas rupturas epistemológicas e suas revoluções científicas.
A mais recente dessas rupturas e revoluções liga-se ao que se convencionou chamar de “descoberta do segredo da origem da vida”, isto é, a descoberta das nucleoproteínas ou do ADN – ácido desoxirribonucléico -, definido como código genético. Essa descoberta, recentíssima (data dos fins dos anos 60), resulta do estudo microscópico de açúcares e bases nitrogenadas, que são macromoléculas constituídas por micromoléculas chamadas aminoácidos (o DNA e o RNA), considerados, até o momento, responsáveis pelo fenômeno da vida.
Essa descoberta revela algo muito novo: por um lado, que a vida resulta de um processo químico, mas, por outro, que esse processo é uma ruptura que separa os seres naturais inorgânicos e os seres naturais vivos.
No entanto, os estudiosos do ADN não hesitam em afirmar que, embora com esse conceito se possa construir um paradigma biológico que tenha por modelo a cibernética e a informática (donde a idéia de código genético), a existência e os modos de funcionamento do ADN são enigmas e mistérios e, por enquanto, a origem da vida parece ter resultado de um puro acaso e não de uma necessidade causal, nem de uma finalidade necessária.
O que é espantoso, porém, é que mesmo sem conhecer exata e rigorosamente os fenômenos investigados, a biologia genética já desenvolveu tecnologias para a invenção de novos alimentos, mutações em animais e vegetais, a fabricação de vacinas contra vírus, etc.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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