Finalidade, evolução e origem da vida
Uma disputa atravessou a história das ciências biológicas e pode ser assim
formulada: É a vida de mesma natureza que os demais fenômenos físico-químicos e
está, como eles, submetida ao determinismo das causas e efeitos, ou é um
fenômeno totalmente diferente, com suas leis próprias? A primeira tendência
chama-se mecanicismo; a segunda, vitalismo.
O vitalismo tendeu a ser vitorioso por invocar dois fenômenos que só
existem para os seres vivos: a relação com o tempo (diferença entre vida e
morte) e a finalidade (a vida é um processo ativo de interação com o meio
ambiente para a realização de fins como conservação, reprodução, reparação).
O vitalismo é filosoficamente problemático. De fato, durante muitos
séculos, para explicar a temporalidade e a finalidade dos fenômenos vitais,
afirmou-se a existência, nos corpos vivos, de almas ou inteligências, que
dirigiriam racionalmente a vida. Mesmo afastando essas idéias, a finalidade não
se torna um conceito cientificamente claro. Por exemplo, devemos dizer que é
para poder voar (finalidade) que os pássaros desenvolvem a forma ovoide de
tronco, a estrutura de ossos leves e ocos, a leveza do pescoço e da cabeça, a
disposição das penas nas asas, ou, ao contrário, que é por haver desenvolvido
essas características que, com o passar do tempo, os pássaros puderam voar?
Os embaraços para definir com clareza o que seja a finalidade repercute
numa outra ideia da biologia: a de evolução. A vida, por ser interação ativa
com o meio ambiente, leva a mudanças nos organismos para a adaptação dos
indivíduos e a manutenção da espécie. Como essas transformações ocorrem no
tempo e como se considera que os organismos “progridem” ou “melhoram o
desempenho” graças à invenção de mecanismos novos de adaptação, fala-se em evolução. A finalidade da evolução é a
preservação da espécie. Surge, então, a pergunta: O que leva a vida à
finalidade evolutiva?
Essa pergunta é difícil de ser respondida, porque a ideia de evolução se
refere às espécies (não aos indivíduos) e pressupõe a noção de hereditariedade,
isto é, transmissão dos caracteres adquiridos por evolução a todos os membros
da espécie. Com a ideia de evolução das espécies e hereditariedade dos
caracteres adquiridos, surgem novas indagações:
● se a evolução não é do indivíduo e sim da espécie, porém, se são os
indivíduos que são levados a se transformar para se adaptar, o que é uma
espécie?
● se a espécie evolui, mas se o faz transmitindo as estruturas
hereditárias, o que podem ser as leis de hereditariedade, já que uma espécie
pode mudar?
● se há leis de hereditariedade e se há mutação das espécies, como se
relacionam a finalidade hereditária e a finalidade evolutiva?
● se o organismo vivo é, como dizem a bioquímica e a genética
contemporâneas, uma máquina que se constrói a si mesma e dá a si mesma sua
finalidade, o que significa a ideia de adaptação ao meio, central na teoria da
evolução?
Questões como essas não invalidam a biologia como ciência, pelo contrário,
indicam que esta não é um conjunto de verdades acabadas e absolutas, mas um
processo de conhecimento. Por isso, a biologia também possui suas rupturas
epistemológicas e suas revoluções científicas.
A mais recente dessas rupturas e revoluções liga-se ao que se convencionou
chamar de “descoberta do segredo da origem da vida”, isto é, a descoberta das
nucleoproteínas ou do ADN – ácido desoxirribonucléico -, definido como código genético. Essa descoberta,
recentíssima (data dos fins dos anos 60), resulta do estudo microscópico de
açúcares e bases nitrogenadas, que são macromoléculas constituídas por
micromoléculas chamadas aminoácidos (o DNA e o RNA), considerados, até o
momento, responsáveis pelo fenômeno da vida.
Essa descoberta revela algo muito novo: por um lado, que a vida resulta de
um processo químico, mas, por outro, que esse processo é uma ruptura que separa
os seres naturais inorgânicos e os seres naturais vivos.
No entanto, os estudiosos do ADN não hesitam em afirmar que, embora com
esse conceito se possa construir um paradigma biológico que tenha por modelo a
cibernética e a informática (donde a idéia de código genético), a existência e os modos de funcionamento do ADN
são enigmas e mistérios e, por enquanto, a origem da vida parece ter resultado
de um puro acaso e não de uma necessidade causal, nem de uma finalidade
necessária.
O que é espantoso, porém, é que mesmo sem conhecer exata e rigorosamente os
fenômenos investigados, a biologia genética já desenvolveu tecnologias para a
invenção de novos alimentos, mutações em animais e vegetais, a fabricação de
vacinas contra vírus, etc.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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