A lógica matemática
Para os antigos e os medievais
aristotélicos, os princípios e as leis da lógica correspondiam à estrutura da
própria realidade, pois o pensamento exprime o real e dele participa.
Aristóteles dizia que a verdade e a falsidade são propriedades do pensamento e
não das coisas; que a realidade e a irrealidade (aparência ilusória) são
propriedades das coisas e não do pensamento; mas que um pensamento verdadeiro
devia exprimir a realidade da coisa pensada, enquanto um pensamento falso nada
podia exprimir.
Para os medievais terministas e
para os modernos (século XVII), a lógica era uma arte de pensar, para
bem conduzir a razão nas ciências. Os princípios e as leis da lógica
correspondiam à estrutura do próprio pensamento, sobretudo à do raciocínio
dedutivo – para os filósofos franceses de Port-Royal – e à do raciocínio
indutivo – para o filósofo inglês Francis Bacon. Como arte de pensar, a lógica
oferecia ao conhecimento científico e filosófico as leis do pensamento
verdadeiro e os procedimentos para a avaliação dos conhecimentos adquiridos.
Essa lógica – antiga e moderna –
não era plenamente formal, pois não era indiferente aos conteúdos das
proposições, nem às operações intelectuais do sujeito do conhecimento. A forma
lógica recebia o valor de verdade ou falsidade a partir da verdade ou falsidade
dos atos de conhecimento do sujeito e da realidade ou irrealidade dos objetos
conhecidos. Ao contrário, a lógica contemporânea, procurando tornar-se um puro
simbolismo do tipo matemático e um cálculo simbólico, preocupa-se cada vez
menos com o conteúdo material das proposições (a realidade dos objetos
referidos pela proposição) e com as operações intelectuais do sujeito do
conhecimento (a estrutura do pensamento). Tornou-se plenamente formal.
Assim, como o matemático lida
com objetos que foram construídos pelas próprias operações matemáticas, de
acordo com princípios e regras prefixados e aceitos por todos, assim também o
lógico elabora os símbolos e as operações que constituem o objeto lógico por
excelência, a proposição. O lógico indaga que forma deve possuir uma proposição
para que:
● seja-lhe atribuída o valor de
verdade ou falsidade;
● represente a forma do
pensamento; e
● represente a relação entre
pensamento, linguagem e realidade.
A lógica descreve as formas, as
propriedades e as relações das proposições, graças à construção de um
simbolismo regulado e ordenado que permite diferenciar linguagem cotidiana e
linguagem lógica formalizada.
Boole definiu a lógica como o
“método que repousa sobre o emprego de símbolos, dos quais se conhecem as leis
gerais de combinação e cujos resultados admitem interpretação coerente”.
A lógica tornou-se cada vez mais
uma ciência formal da linguagem, mas de uma linguagem muito especial, que nada
tem a ver com a linguagem cotidiana, pois trata-se de uma linguagem
inteiramente construída por ela mesma, partindo do modelo da matemática.
Dois aspectos devem ser
mencionados para melhor compreendermos a relação entre a lógica contemporânea e
a matemática.
1. A mudança no modo de
conceber o que seja a matemática:
Durante séculos (na verdade,
desde os gregos), considerou-se a matemática uma ciência baseada na intuição
intelectual de verdades absolutas, existentes em si e por si mesmas, sem
depender de qualquer interferência humana. Os axiomas, as figuras geométricas,
os números e as operações aritméticas, os símbolos e as operações algébricas
eram considerados verdades absolutas, universais, necessárias, que existiriam
com ou sem os homens e que permaneceriam existindo mesmo se os humanos
desaparecessem (para muitos filósofos, a matemática chegou a ser considerada a
ciência divina por excelência).
No entanto, desde o século XIX
passou-se a considerar a matemática uma ciência que resulta de uma construção
intelectual, uma invenção do espírito humano, sem que suas entidades sejam
existentes em si e por si mesmas. Os entes matemáticos são puras idealidades
construídas pelo intelecto ou pelo pensamento, que formula um conjunto rigoroso
de princípios, regras, normas e operações, para a criação de figuras, números,
símbolos, cálculos, etc.
No final do século XIX, o
matemático italiano Peano realizou um estudo sobre a aritmética dos números
cardinais finitos demonstrando que podia ser derivada de cinco axiomas ou
proposições primitivas e de três termos não definíveis – zero, número
e sucessor de.
Desta maneira, a matemática
surgia como um ramo da lógica, cabendo ao alemão Frege e aos ingleses Bertrand
Russell e Alfred Whitehead prosseguir o trabalho de Peano, oferecendo as
definições lógicas dos três termos que o matemático italiano julgara
indefiníveis. Frege ofereceu o primeiro conceito de sistema formal e os
primeiros exemplos do cálculo de proposições e de predicados.
A matemática é uma ciência de
formas e cálculos puros organizados numa linguagem simbólica perfeita,
na qual cada signo é um algoritmo, isto é, um símbolo com um único
sentido. É elaborada pelo espírito humano e não um pensamento intuitivo que
contemplaria entidades perfeitas e eternas, existentes em si e por si mesmas.
2. Mudança no modo de
conceber o pensamento, distinguindo psicologia e teoria do conhecimento:
Durante muitos séculos,
psicologia e teoria do conhecimento estiveram confundidas, constituindo uma só
disciplina filosófica, encarregada de estudar os modos como conhecemos as
coisas, distinguindo o que é puramente pessoal e individual (a vida psíquica ou
mental de cada um de nós) do que é universal e necessário (válido em todos os
tempos e lugares, para todos os sujeitos do conhecimento).
Quando a psicologia se tornou
uma ciência (descrição dos fatos psíquicos e suas leis) independente da
Filosofia e a teoria do conhecimento permaneceu filosófica (por não ser apenas
uma descrição da vida mental, mas um estudo das diferenças no conteúdo e na
forma dos conhecimentos), surgiu a pergunta: “Onde fica a lógica?”. Alguns
responderam: “Na psicologia”. Alegavam que os progressos da ciência psicológica
iriam definir as regras universais a que todo e qualquer pensamento se submete,
e a lógica seria apenas um ramo da psicologia, aquele que estuda como funciona
o pensamento científico.
Essa corrente lógica recebeu o
nome de psicologismo lógico, mas foi logo refutada pela maioria dos
lógicos e particularmente pelo alemão Edmund Husserl, o criador da
fenomenologia. À pergunta: “Onde fica a lógica?” os lógicos responderam:
“Consigo mesma”. Em outras palavras, a lógica não é parte da psicologia nem da
teoria do conhecimento, mas uma disciplina filosófica independente. Essa
independência decorre da complexidade do pensamento, pois quando pensamos, há
quatro fatores que nos permitem pensar: 1. o sujeito que pensa (o sujeito do
conhecimento estudado pela teoria do conhecimento); 2. o ato de pensar (as
operações mentais estudadas pela psicologia); 3. o objeto pensado (estudado
pelas ciências); e 4. o pensamento decorrente do ato de pensar (esse, o objeto
da lógica).
A lógica não se confunde com a
psicologia, nem com a teoria do conhecimento, porque seu objeto é o pensamento
enquanto operação demonstrativa, que segue regras orientadas para determinar se
a demonstração é verdadeira ou falsa do ponto de vista do próprio pensamento,
isto é, se a demonstração obedeceu ou não aos princípios lógicos.
Qual o efeito dessas duas
mudanças sobre a lógica contemporânea?
Em primeiro lugar, ao manter a
proximidade e a relação com a matemática, a lógica passou a ser entendida como
avaliadora da verdade ou falsidade do pensamento, concebido como uma construção
intelectual. Ora, se o pensamento constrói seus próprios objetos, em vez de
descobri-los ou contemplá-los, essa construção, segundo os próprios
matemáticos, faz com que a matemática deva ser entendida como um discurso
ou como uma linguagem que obedece a certos critérios e padrões de
funcionamento. Assim sendo, a lógica adotou para si o modelo de um discurso ou
de uma linguagem que lida com puras formas sem conteúdo e tais formas são
símbolos de tipo matemático (algoritmos).
Em segundo lugar,
distinguindo-se da psicologia e da teoria do conhecimento, a lógica passou a
dedicar-se menos ao pensamento e muito mais à linguagem, seja como tradução,
representação ou expressão do pensamento, seja como discurso independente do
pensamento. Seu objeto passou a ser o estudo de um tipo determinado de
discurso: a proposição e as relações entre proposições. Sua finalidade
tornou-se o projeto de oferecer normas e critérios para uma linguagem perfeita,
capaz de avaliar as demais linguagens (científicas, filosóficas, artísticas,
cotidianas, etc.).
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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