Lógica dos predicados e lógica das relações
Vimos que alguns filósofos
medievais e clássicos julgaram necessário quantificar, além do sujeito da
proposição, também o predicado. No século XIX, o lógico inglês Hamilton levou
avante a quantificação dos predicados, chegando a oito tipos de proposições:
1. afirmativas toto-totais,
em que sujeito e predicado são tomados em toda sua extensão (universais): “Todo
S é todo P”. Por exemplo: “Todo triângulo é todo trilateral”;
2. afirmativas toto-parciais,
em que o sujeito é tomado universalmente e o predicado particularmente: “Todo S
é algum P”. Por exemplo: “Todo triângulo é alguma figura”;
3. afirmativas parti-totais,
em que o sujeito é particular e o predicado é tomado universalmente: “Alguns S
são todo P”. Por exemplo: “Alguns sul-americanos são todos os
brasileiros”;
4. afirmativas parti-parciais,
em que o sujeito e o predicado são tomados como particulares: “Algum S é
algum P”. Por exemplo: “Algumas figuras equilaterais são alguns
triângulos”;
5. negativas toto-totais,
em que o sujeito em toda a sua extensão é excluído de toda a extensão do
predicado: “Nenhum S é nenhum P”. Por exemplo: “Nenhum triângulo
é nenhum quadrado”;
6. negativas toto-parciais,
em que todo sujeito é excluído de apenas uma parte do predicado: “Nenhum S
é algum P”. Por exemplo: “Nenhum triângulo é algum equilateral”;
7. negativas parti-totais,
em que só uma parte do sujeito é excluída da extensão do predicado: “Algum S
não é nenhum P”. Por exemplo: “Alguma figura equilateral não é nenhum
triângulo”;
8. negativas parti-parciais,
em que uma parte da extensão do sujeito é excluída de uma parte da extensão do
predicado: “Alguns S não são alguns P”. Por exemplo: “Algum
triângulo não é alguma figura equilateral”.
As proposições poderiam
converter-se simplesmente umas nas outras e, finalmente, uma proposição era
apenas uma equação entre um sujeito e um predicado. Com isso, o
raciocínio já não consistia em fazer uma noção entrar em outra (a antiga
inerência aristotélica), mas ser capaz de substituir outra equivalente, em
proposições dadas, de sorte que proposições usando palavras como homem, animal,
mortal, etc. poderiam ser tratadas como os raciocínios matemáticos que
usam símbolos como x, y e z. Estava aberta a porta para
que Boole propusesse o cálculo lógico.
O cálculo lógico realizou-se em
duas etapas diferentes. Na primeira, com a introdução das noções de classe
e função, manteve-se a ideia de que a proposição é a inclusão de um
sujeito num predicado, ou melhor, a inclusão de toda ou parte da extensão do
sujeito em toda ou parte da extensão do predicado. Na segunda etapa, com a
introdução da ideia de relação, passou-se da concepção
inclusiva-exclusiva do sujeito e do predicado à de sua equivalência ou
substituição de um por outro.
À medida que se desenvolveu a
formalização e a matematização da lógica, a noção de predicado recebeu um novo
sentido e um novo tratamento. Passou a ser tratado como classe. Esta é um
conjunto de objetos, que, possuindo algo em comum, “vão juntos”. Um predicado é
o que permite reunir determinados objetos em classes: a classe dos azuis, a
classe dos esféricos, a classe dos sul-americanos, a classe dos felizes, a
classe dos miseráveis, a classe dos sólidos, etc.
Um predicado isolado – azul, feliz,
sólido, miserável, etc. – não é verdadeiro nem falso. Recebe tal valor apenas a
partir da inclusão ou exclusão do sujeito numa classe. Com a classe, o
predicado se torna uma relação entre duas variáveis e essa relação chama-se função.
A lógica passa a construir um simbolismo que permite definir as funções do
predicado, introduzindo novos quantificadores com os quais a função é
calculada. Esse cálculo constitui a lógica dos predicados.
Por exemplo, a proposição
tradicional “Sócrates é homem” será formalizada como F(a), onde F, a
função, significa a “quantidade de ser homem” e a, a variável, designa
“Sócrates”. Todavia, a variável poderá designar um indivíduo qualquer, um
sujeito indeterminado, e a proposição será escrita como F(x). Tal proposição
pode ser quantificada:
● a universal será escrita como
(x)F(x), devendo ser lida como “para todo x, F de x”;
● a particular ou existencial
será escrita como (x)F(x), devendo ser lida como “existe um x tal que F
de x”.
Se, em lugar da inclusão tradicional
do predicado no sujeito, tivermos classes, a relação será estabelecida entre
“elemento” e “classe”, ou entre as próprias classes, tornando a proposição
muito mais abrangente e complexa. Tomemos, por exemplo, a proposição “Os homens
são mortais” e a proposição “Sócrates é mortal”. Para calculá-las, devemos
começar pela relação entre a classe dos homens e a dos mortais:
A
(Classe dos homens)
B (Classe dos mortais)
A B (A classe dos homens está incluída na classe dos mortais.)
x (Sócrates)
A (Classe dos homens)
x A (Sócrates pertence à classe dos homens.)
Donde:
(x) (x A) (x B), onde “” significa implica.
Lemos:
“Para todo x, x pertence a A implica que x pertence a B”.
Portanto, “Sócrates é mortal”.
B (Classe dos mortais)
A B (A classe dos homens está incluída na classe dos mortais.)
x (Sócrates)
A (Classe dos homens)
x A (Sócrates pertence à classe dos homens.)
Donde:
(x) (x A) (x B), onde “” significa implica.
Lemos:
“Para todo x, x pertence a A implica que x pertence a B”.
Portanto, “Sócrates é mortal”.
São seis as operações que podem
ser realizadas com as classes:
1. inclusão de uma classe em
outra: A B;
2. reunião de várias classes: D M N;
3. intersecção de várias classes
com elementos comuns: A B C;
4. a da classe universal que
abrange todos os elementos e cujo símbolo é ;
5. a da classe vazia, isto é,
que não contém elemento algum e cujo símbolo é ;
6. a da classe complementar A’
de A, formada por todos os elementos que não pertencem a A.
Os lógicos que mais
desenvolveram a possibilidade de uma lógica das classes, das funções
proposicionais e do cálculo dos predicados foram Frege, Whitehead, Bertrand
Russell e Wittgenstein.
A lógica dos predicados foi
enriquecida e modificada com a lógica das relações, iniciada no século
XIX pelos filósofos ingleses Morgan (que também era matemático) e Peirce.
A lógica das relações ocupa-se,
como o nome indica, com relações entre conjuntos de objetos: maior do que,
menor do que, perto de, longe de, mais velho que, mais novo que, pai de, mãe
de, irmão de, causa de, finalidade de, semelhança com, diferente de, etc. As
relações podem abranger dois ou mais objetos, sendo binárias, ternárias,
quaternárias, etc., dependendo do número de objetos abrangidos por ela. A
relação mais conhecida é a binária, expressa na fórmula xRy, que significa: há
uma relação entre x e y.
As relações possuem propriedades
calculáveis. Tais propriedades permitem diferenciar os vários tipos de relação,
como por exemplo:
● relação transitiva:
dados x, y e z e dadas xRy e yRz, há uma relação xRz. Por
exemplo: x é maior do que y (xRy), y é maior do que z
(yRz), x é maior do que z (xRz).
Ou:
(xRy) (yRz) (xRz)
(xRy) (yRz) (xRz)
● relação não-transitiva:
dados x, y e z, e dadas xRy e yRz, não se pode ter xRz,
embora haja uma relação entre x e z. Por exemplo: Pedro é pai de
João (xRy), João é pai de Antônio (yRz), mas Pedro não é pai de Antônio, pois é
seu avô;
● relação intransitiva:
dados x, y e z e dadas xRy e yRz, não é possível
determinar qual seria a relação entre x e z. Por exemplo: x
é maior do que y (xRy), y é menor do que z (yRz), mas não
podemos saber se x é maior ou menor do que z;
● relação de simetria:
xRy é o mesmo que yRx. Por exemplo: a é igual a b, b é
igual a a;
Ou:
(x)(y)(xRy) (yRx)
(x)(y)(xRy) (yRx)
● relação de assimetria:
quando se tem xRy não se pode ter yRx. Por exemplo: a é maior do que b
e, portanto, não se pode ter b é maior do que a.
Ou:
~(x)~(y)(xRy) (yRx)
~(x)~(y)(xRy) (yRx)
● relação reflexiva:
estabelece-se entre uma relação transitiva e uma relação simétrica. Assim, por
exemplo, “x pode ver y” é reflexiva num mundo onde haja espelhos,
onde “y pode ver x”.
● relação irreflexiva:
estabelece-se entre relações intransitivas e assimétricas;
● relação inversa: uma
relação é inversa (S) a uma outra relação (R), quando para todos
os objetos x, y e z, verifica-se xRy, se e somente se
houver ySx. É o caso, por exemplo, da relação “pai de” e “filho de”.
Tanto a lógica dos predicados
quanto a lógica das relações estão submetidas a uma lógica mais ampla, que é a
das proposições ou do cálculo proposicional, pois a proposição é o campo
da lógica propriamente dita. O cálculo das proposições consiste em estabelecer
os procedimentos pelos quais podemos determinar a verdade ou a falsidade de uma
proposição, de acordo com sua ligação com outra ou com outras. Os casos mais
simples de cálculos de proposições referem-se à conjunção (“Pedro canta e
Pedro dança”), negação (“Pedro canta. Pedro não canta”), disjunção
(“Pedro canta ou Pedro dança”) e implicação (“Se Pedro canta, então
Pedro dança”).
O cálculo consiste em atribuir o
valor “verdade” a uma das proposições, o valor “falsidade” à outra e inferir o
valor da ligação entre elas. Para que se perceba que o conteúdo das
proposições é irrelevante, só interessando sua forma, vejamos como são
simbolizados os vários cálculos das ligações proposicionais:
● cálculo da conjunção e
(símbolo da conjunção )
p q pq
v v v
v f f
f v f
f f f
v v v
v f f
f v f
f f f
● cálculo da negação não
(símbolo da negação ~)
p ~p
v f
f v
v f
f v
● cálculo da disjunção ou
(símbolo da disjunção )
p q pq
v v v
v f v
f v v
f f f
v v v
v f v
f v v
f f f
● cálculo da implicação implica
que (símbolo da implicação )
p q pq
v v v
v f f
f v v
f f v
v v v
v f f
f v v
f f v
Um exemplo poderá nos ajudar a
compreender como funciona o cálculo. Se dissermos: “Se Pedro é cearense (p)
ou catarinense (q), então é brasileiro (r). Ora, Pedro não é
brasileiro. Portanto, não é cearense nem catarinense”, teremos:
(p q r) r ~p ~q
● cálculo da bi-implicação ou
equivalência (símbolo da equivalência )
p q pq
v v v
v f f
f v f
f f v
v v v
v f f
f v f
f f v
Esses cálculos constituem as matrizes,
que são como tabelas que apresentam todas as situações possíveis que cada
ligação associa a um par de proposições elementares p e q.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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