"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Metafísica ou ontologia


A palavra metafísica foi empregada pela primeira vez por Andrônico de Rodes, por volta do ano 50 a.C., quando recolheu e classificou as obras de Aristóteles que, durante muitos séculos, haviam ficado dispersas e perdidas. Com essa palavra – ta meta ta physika -, o organizador dos textos aristotélicos indicava um conjunto de escritos que, em sua classificação, localizavam-se após os tratados sobre a física ou sobre a Natureza, pois a palavra grega meta quer dizer: depois de, após, acima de.
Ta: aqueles; meta: após, depois; ta physika: aqueles da física. Assim, a expressão ta meta ta physika significa literalmente: aqueles [escritos] que estão [catalogados] após os [escritos] da física. Ora, tais escritos haviam recebido uma designação por parte do próprio Aristóteles, quando este definira o assunto de que tratavam: são os escritos da Filosofia Primeira, cujo tema é o estudo do “ser enquanto ser”. Desse modo, o que Aristóteles chamou de Filosofia Primeira passou a ser designado como metafísica.  

No século XVII, o filósofo alemão Jacobus Thomasius considerou que a palavra correta para designar os estudos da metafísica ou Filosofia Primeira seria a palavra ontologia.
A palavra ontologia é composta de duas outras: onto e logia. Onto deriva-se de dois substantivos gregos, ta onta (os bens e as coisas realmente possuídas por alguém) e ta eonta (as coisas realmente existentes). Essas duas palavras, por sua vez, derivam-se do verbo ser, que, em grego, se diz einai. O particípio presente desse verbo se diz on (sendo, ente) e ontos (sendo, entes). Dessa maneira, as palavras onta e eonta (as coisas) e on (ente) levaram a um substantivo: to on, que significa o Ser. O Ser é o que é realmente e se opõe ao que parece ser, à aparência. Assim, ontologia significa: estudo ou conhecimento do Ser, dos entes ou das coisas tais como são em si mesmas, real e verdadeiramente.
Por que Thomasius julgou a palavra ontologia mais adequada do que a palavra metafísica? Para responder a essa pergunta devemos retornar ao que escreveu Aristóteles, quando propôs a Filosofia Primeira.
Ao definir a Filosofia Primeira, Aristóteles afirmou que ela estuda o ser das coisas, a ousia. A palavra ousia é o feminino do particípio presente do verbo ser, isto é, do verbo einai. Em português, ousia é traduzido por essência, porque é traduzida da palavra latina essentia.
Em latim o verbo ser se diz esse e a palavra essentia foi inventada pelos filósofos para traduzir ousia. Assim, a Filosofia Primeira é o estudo ou o conhecimento da essência das coisas ou do ser real e verdadeiro das coisas, daquilo que elas são em si mesmas, apesar das aparências que possam ter e das mudanças que possam sofrer.
Thomasius considerou que Aristóteles definira a Filosofia Primeira como o estudo do ser das coisas, como o que há de íntimo, perene e verdadeiro nos entes. Não estuda esta ou aquela coisa, este ou aquele ente, mas busca aquilo que faz de um ente ou de uma coisa, um ser. Busca a essência de um ente ou de uma coisa. Por isso, por ser o estudo da ousia e porque a ousia oferece o ser real e verdadeiro de um ente, oferece o on íntimo e perene, a Filosofia Primeira deveria ser designada com a palavra ontologia. Nesse caso, a palavra metafísica seria apenas a indicação do lugar ocupado nas estantes pelos livros aristotélicos de Filosofia Primeira, localizados depois dos tratados sobre a física ou a Natureza.
A palavra ontologia diria qual é o assunto da Filosofia Primeira, enquanto a palavra metafísica diria apenas qual é o lugar dos livros da Filosofia Primeira no catálogo das obras de Aristóteles.
Por que, então, a tradição filosófica consagrou a palavra metafísica, em lugar de ontologia? Porque Aristóteles, ao definir a Filosofia Primeira, também afirmou que ela estuda os primeiros princípios e as causas primeiras de todos os seres ou de todas as essências, estudo que deve vir antes de todos os outros, porque é a condição de todos eles.
Que quer dizer “vir antes”? Para Aristóteles, significa estar acima dos demais, estar além do que vem depois, ser superior ao que vem depois, ser a condição da existência e do conhecimento do que vem depois. Ora, a palavra meta quer dizer isso mesmo: o que está além de, o que está acima de, o que vem depois, mas no sentido de ser superior ou de ser a condição de alguma coisa. Se assim é, então a palavra metafísica não quer dizer apenas o lugar onde se encontram os escritos posteriores aos tratados de física, não indica um mero lugar num catálogo de obras, mas significa o estudo de alguma coisa que está acima e além das coisas físicas ou naturais e que é a condição da existência e do conhecimento delas.
Por isso, a tradição consagrou a palavra metafísica, mais do que a palavra ontologia. Metafísica, nesse caso, quer dizer: aquilo que é condição e fundamento de tudo o que existe e de tudo o que puder ser conhecido.
Até aqui respondemos à pergunta: Por que metafísica em lugar de ontologia? Mas ainda não respondemos à pergunta principal: Por que a metafísica ou ontologia ocupou o lugar que, no início da Filosofia, era ocupado pela cosmologia ou física? Para isso, precisamos acompanhar os motivos que levaram a uma crise da cosmologia e ao surgimento da ontologia, que receberia o nome de metafísica.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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