Lógica e Dialética
Vimos a diferença entre Platão e
Aristóteles a respeito do papel da dialética no conhecimento. Vimos também a
maneira como os estoicos e os medievais articularam lógica e dialética. Vimos,
por fim, que a lógica moderna e contemporânea enfatizaram o formalismo lógico e
aproximaram ao máximo lógica e matemática. Entretanto, entre o século XVII e o
século XX, houve uma outra posição filosófica que, procurando superar as
diferenças entre Platão e Aristóteles, de um lado, e recusando a identificação
entre lógica e matemática, de outro lado, reuniu, mais uma vez, lógica e dialética.
Trata-se da filosofia hegeliana, no século XIX.
Para compreendermos a posição de
Hegel, precisamos levar em consideração dois acontecimentos filosóficos alemães
muito importantes: o idealismo crítico de Kant e o romantismo filosófico.
Como já analisamos
anteriormente, Kant, ao escrever a Crítica da razão pura e a Crítica
da razão prática, havia estabelecido uma distinção profunda entre a
realidade em si e o conhecimento da realidade. A primeira, dizia ele, é
inalcançável por nosso entendimento, embora nossa razão aspire por ela, tendo
criado a metafísica como conhecimento racional das coisas em si.
Mas a metafísica não é possível:
é uma ilusão (inevitável) de nossa razão. Conhecemos apenas o modo como a
realidade se apresenta a nós (os fenômenos), organizada pela estrutura de nossa
própria capacidade de conhecer, isto é, segundo as formas do espaço e do tempo,
e segundo os conceitos ou categorias de nosso entendimento (substância,
qualidade, quantidade, causalidade, atividade, passividade). Embora a realidade
em si, isto é, a essência em si de Deus, da alma e do mundo, não possa ser
racionalmente conhecida por nós, permanece, porém, como um ideal de nossa
razão, que, fazendo dessas essências idéias puras, as coloca como fundamentos
de nossa vida ética ou moral.
A separação kantiana entre
entendimento e razão, conceitos e idéias, fenômenos e realidades em si foi
interpretada como separação entre sujeito e mundo, seres humanos e Natureza,
espírito e Natureza. Como o sujeito e sua atividade de conhecimento, assim como
sua atividade ética e política criam o mundo humano da Cultura, a separação
kantiana foi interpretada como separação entre Cultura e Natureza.
Os filósofos e artistas
românticos alemães não aceitavam tal separação e buscaram caminhos pelos quais
humanos e Natureza pudessem reunir-se novamente, ou, como diziam, pudessem
“reconciliar-se”. Julgavam haver encontrado o caminho para isso nas Artes. Elas
seriam o reencontro dos humanos e da Natureza, através da beleza e do
sentimento estético ou da imaginação e da sensibilidade.
Hegel, porém, recusou a solução
romântica. Dizia ele que, no fundo, não tinha havido reconciliação alguma.
Enquanto Kant coloca tudo no sujeito, os românticos haviam colocado tudo na
Natureza, desejando fundir-se com ela por meio da imaginação e da
sensibilidade. Os dois termos – Cultura e Natureza, sujeito e mundo, espírito e
realidade – continuavam separados.
Como reuni-los verdadeiramente?
Como alcançar a verdadeira reconciliação? Respondeu Hegel: compreendendo que só
existe o Espírito, que a Natureza é uma manifestação do próprio Espírito, uma
exteriorização do Espírito, que a Cultura também é uma exteriorização do
Espírito, manifestação espiritual, e que ambos serão reunidos e reconciliados
na interiorização do próprio Espírito, quando este se reconhecer como a
interioridade que se manifestou externamente como Natureza e Cultura.
O movimento pelo qual o Espírito
se exterioriza como Natureza e Cultura e pelo qual retorna a si mesmo como
interioridade de ambas é a História, não como seqüência temporal de
acontecimentos e de causas e de efeitos, mas como vida do Espírito.
O que é o Espírito? É o verbo
divino. Em grego: o logos. O que é a vida do logos? (a História)?
É a lógica. Que é a lógica como vida do Espírito? É o movimento pelo
qual o Espírito produz o mundo (Natureza e Cultura), conhece sua produção e se
reconhece como produtor – é, portanto, o movimento da atividade de criação e de
autoconhecimento do Espírito. É a ciência da lógica, entendendo-se por
ciência não a descrição e explicação dos fatos e de seus encadeamentos causais,
mas a atividade pela qual o Espírito se conhece a si mesmo ao criar-se a si
mesmo, manifestando-se ou exteriorizando-se como Natureza e Cultura.
Essa ciência da lógica é a dialética.
O que é a dialética? Platão e
Aristóteles, divergindo quanto ao papel da dialética no conhecimento,
concordavam porém num ponto: a dialética é o logos dividido internamente
em predicados opostos ou contrários, dividido internamente por
predicados contraditórios.
Ora, que fizeram Platão e
Aristóteles? Consideraram que a realidade e a verdade obedecem ao princípio de
identidade e expulsam a contradição. Esta é considerada irreal (do ponto de
vista da realidade) e impossível (do ponto de vista da verdade), pois é irreal
e impossível que uma coisa seja e não seja ela mesma ao mesmo tempo e na mesma
relação. Em outras palavras, algo é real e verdadeiro quando podemos conhecer o
conjunto de seus predicados positivos e afastar os predicados negativos
contrários e contraditórios. Em Platão, a função da dialética era expulsar a
contradição. Em Aristóteles, a função da lógica era garantir o uso correto do
princípio de identidade.
Ambos se enganaram, julga Hegel.
A dialética é a única maneira pela qual podemos alcançar a realidade e a verdade
como movimento interno da contradição, pois Heráclito tinha razão ao
considerar que a realidade é o fluxo eterno dos contraditórios. No entanto, ele
também se enganou ao julgar que os termos contraditórios eram pares de termos
positivos opostos. A verdadeira contradição dialética possui duas
características principais:
1. nela, os termos
contraditórios não são dois positivos contrários ou opostos, mas dois
predicados contraditórios do mesmo sujeito, que só existem negando um ao outro.
Em vez de dizer quente-frio, doce-amargo, material-espiritual,
natural-cultural, devemos compreender que é preciso dizer: quente-não quente,
frio-não frio, doce-não doce, amargo-não amargo, material-não material,
espiritual-não espiritual, natural-não natural, cultural-não cultural;
2. o negativo (o não x:
não quente, não-doce, não material, não natural, etc.) não é um positivo
contrário a outro positivo, mas é verdadeiramente negativo. Se eu disser, por
exemplo, “o caderno não é a árvore”, esse não não é um negativo verdadeiro,
pois o caderno e a árvore continuam como dois termos positivos. Esse não,
escreve Hegel, é mera negação externa. Nesta, qualquer termo pode ser negação
de qualquer outro. Assim, por exemplo, posso dizer: o caderno não é a árvore,
não é a porta, não é João, não é a mesa, etc. O verdadeiro negativo é uma negação
interna, como aquela que surge se eu disser, por exemplo, “o caderno é a
não-árvore”, pois, aqui, o ser do caderno, a sua realidade, é a negação da
realidade da árvore; o caderno é a árvore negada como árvore. Não tenho uma
árvore que virou um caderno, mas uma árvore que deixou de ser árvore porque foi
transformada em caderno. A negação interna é aquela na qual um ser é a
supressão de seu outro, de seu negativo.
A contradição dialética nos revela
um sujeito que surge, se manifesta e se transforma graças à contradição de seus
predicados. Em lugar de a contradição ser o que destrói o sujeito (como
julgavam todos os filósofos), ela é o que movimenta e transforma o sujeito,
fazendo-o síntese ativa de todos os predicados postos e negados por ele.
Que é a lógica, vida do
Espírito? É o movimento dialético pelo qual o Espírito, como sujeito vivo,
põe ou cria seus predicados, manifesta-se através deles, nega-os e os suprime
como termos separados dele e diferentes dele, para fazê-los coincidirem com
ele. Os predicados não são, como na lógica formal e matemática, termos
positivos inertes que atribuímos ou recusamos a um sujeito, mas são realidades
criadas, negadas, suprimidas e reincorporadas pelo próprio sujeito, isto é,
pelo Espírito.
Se retornarmos agora ao nosso
ponto de partida – a separação sujeito-mundo, Cultura-Natureza – poderemos
compreender por que a ciência da lógica, tal como Hegel a concebe, é a
reconciliação racional dos termos.
O Espírito começa como um
sujeito que se exterioriza no predicado Natureza, isto é, manifestando-se como coisa
(substância, qualidade, quantidade, relações de causa e efeito, etc.). Ele é
terra, água, ar, fogo, céu, astros, mares, minerais, vegetais, animais. Para
conservar-se vivo, o ser natural (a coisa) precisa consumir os seres que o
rodeiam: o Espírito como Natureza nega-se a si mesmo consumindo-se a si mesmo
(os animais consomem água, plantas, outros animais, ar, calor, luz; as plantas
consomem calor, água, luz; os astros consomem energia e matéria, etc.).
Essa negação pelo consumo não é
transformadora, pois ela se realiza para conservar as coisas. Entretanto, o
Espírito se manifesta num outro predicado, a Consciência. Esta também
busca conservar-se, mas, agora, o faz não pelo simples consumo das coisas
naturais mas pela negação da mera naturalidade delas. O que é essa negação?
Quando digo “Isto é uma
montanha”, tenho a impressão de que me refiro a uma coisa natural, diferente de
mim, existente em si mesma e com características positivas próprias.
Entretanto, o simples fato de que chame uma coisa de montanha indica que ela
não existe em si, mas existe para mim, isto é, possui um sentido
em minha experiência.
Suponhamos agora que eu pertença
a uma comunidade politeísta, que acredita que os deuses, superiores aos homens,
mas dotados de forma humana, habitem os lugares altos. Para mim, agora, a
montanha não é mais uma simples coisa, mas a morada sagrada dos deuses.
Imaginemos em seguida que somos uma empresa capitalista exploradora de minérios
e que haja uma jazida de ferro na montanha. Como empresários, compramos a
montanha para explorá-la. Novamente, ela deixou de ser uma simples coisa
natural para tornar-se propriedade privada, local de trabalho e capital.
Consideremos, por fim, que somos
pintores. Nesse caso, a montanha não é nem morada dos deuses, nem propriedade
privada capitalista, nem local de trabalho, mas forma, cor, volume, linhas,
profundidade – um campo de visibilidade.
Sob essas quatro formas: “isto é
uma montanha”, “morada dos deuses”, “jazida de minério de ferro/propriedade
privada/capital” e “campo de visibilidade”, a montanha como coisa natural
desapareceu, foi negada como mera coisa pela consciência e pela ação humanas.
Tornou-se não-coisa porque tornou-se montanha-para-nós, significação, ente
cultural. Foi consumida-destruída-suprimida-negada pela Cultura. Em termos
hegelianos, o Espírito negou-se como Natureza e afirmou-se como Cultura.
Negou-se como ser-em-si, tornando-se ser-para-si. Deve-se
compreender que a negação dialética não significa a destruição empírica ou
material de coisas empíricas ou materiais, e sim a destruição de seu sentido
imediato que é superado por um sentido novo, posto pelo próprio
espírito.
Ao reconhecer-se como movimento
interno de posição, negação e supressão de seus predicados (S é
Natureza; S é não-Natureza porque é Cultura), o Espírito reconhece-se
como sujeito que se produz a si mesmo e que é o movimento de autoprodução de si
mesmo (S é Natureza e Cultura porque é o Espírito). Nesse
reconhecimento, reconcilia-se consigo mesmo; é, ao mesmo tempo, em si e para
si.
Como se observa, em Hegel, a
lógica não é um instrumento formal para o bom uso do pensamento, mas é ontologia.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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