"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

O desafio do Islã – a doutrina e o legado muçulmano (Parte 03/06)


A Casa da Sabedoria

A atitude do Islã histórico ante o conhecimento tem sua melhor representação em uma passagem da vida do califa Al-Mamum (século IX), filho de Harum al-Rachid, o célebre personagem de As mil e uma noites. Diz a tradição que, inspirado por um sonho no qual o filósofo Aristóteles lhe pedia que traduzisse suas obras para a língua árabe, Al-Mamum fundou em Bagdá a Bayt al-Hikmah, Casa da Sabedoria. Nela, reuniu um notável grupo de tradutores. E, para compor seu acervo, enviou nada menos do que três delegações do mais alto nível ao imperador de Bizâncio, solicitando-lhe que enviasse, em troca de presentes suntuosos, o maior número de livros possível. Quando o imperador se recusou a atender ao terceiro pedido, Al-Mamum mobilizou um exército para marchar contra os bizantinos. A "sutileza" do argumento fez com que estes rapidamente mudassem de opinião e logo fizessem chegar a Bagdá um incontável número de pergaminhos, com obras filosóficas de Platão e Aristóteles, tratados médicos de Hipócrates e Galeno, textos matemáticos e astronômicos de Euclides e Ptolomeu, entre outras preciosidades literárias.
É irrelevante saber se o sonho com Aristóteles de fato ocorreu ou foi uma lenda inventada para enfeitar a biografia do califa, um partidário dos teólogos mutazilitas, para os quais a fé podia e devia apoiar-se em argumentos racionais. Qualquer que tenha sido o motivo de sua criação, a Casa da Sabedoria tornou-se o maior centro cultural da época. O trabalho de tradução organizou-se nela de forma sistemática: um secretário geral coordenava as atividades e distribuía os manuscritos entre os vários tradutores; cada tradutor era secundado por um redator, encarregado da primeira versão da obra; esta passava, então, pelas mãos de um revisor, que devia expurgar os eventuais erros gramaticais. Seu maior tradutor foi o médico cristão sírio Hunayn ibn Ishaq, que traduziu, do grego ao siríaco e do siríaco ao árabe, todos os tratados médicos de Hipócrates e Galeno.
Muito mais do que simples biblioteca e centro de tradução, a Casa da Sabedoria foi uma verdadeira precursora das modernas universidades, congregando várias entidades de pesquisa, inclusive observatórios astronômicos. Um dos grandes sábios que contribuíram para sua fama foi Abu Yussef al-Kindi, nascido no Iêmen por volta do ano 800 e considerado o primeiro filósofo árabe. Influenciada pela escola neoplatônica grega, sua obra apresenta forte acento místico. Mas não se restringe à filosofia pura, enveredando por várias disciplinas científicas ou afins, como a óptica, a astronomia, a astrologia, a mineralogia, a geologia, a geografia, a meteorologia e a medicina.
Al-Kindi afirmou a extensão infinita do universo, a propagação retilínea da luz e a relação entre os efeitos qualitativos dos remédios e a composição quantitativa de seus ingredientes. Antes que intrigas palacianas minassem sua posição, gozou de enorme prestígio na corte da dinastia abássida, tendo desempenhado a função de tutor de Al-Mutasim, filho e sucessor de Al-Mamun. Um índice do alcance de suas idéias na Europa cristã é a quantidade de vezes que seu nome aparece citado na obra do inglês Roger Bacon, um dos maiores filósofos e cientistas medievais.
Mais notável ainda foi a influência de outro expoente da Casa da Sabedoria, o matemático e astrônomo Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi, de cujo nome deriva a palavra algarismo, que se incorporou ao vocabulário de vários idiomas. Por seu intermédio, chegaram ao Ocidente os algarismos indianos, universalmente adotados sob a errônea denominação de "algarismos arábicos". Ainda no campo da matemática, Al-Khwarizmi foi autor de um importante tratado sobre a resolução de equações, no qual sintetiza e populariza várias técnicas algébricas de origem indiana. No âmbito da astronomia, sua principal contribuição foi a construção de um conjunto de tabelas que permitiam calcular, com notável exatidão, as posições dos planetas em qualquer época do ano.
A Casa da Sabedoria de Bagdá tornou-se um ícone da sede de conhecimento da jovem civilização islâmica. Mas não foi um exemplo isolado. Instituições semelhantes foram criadas em outros centros políticos importantes. A principal delas foi a Casa da Sabedoria do Cairo, estabelecida durante o governo dos califas fatímidas. Nela trabalhou o grande Ibn Al-Haytham (965-1039), o maior físico muçulmano. Nascido em Basra, no Iraque, e conhecido no Ocidente sob o nome de Alhazen, Ibn Al-Haytham tornou-se uma referência obrigatória para todos os filósofos e cientistas medievais. Seu principal tratado, o Kitab al-Manazir (Livro da Óptica), exerceu extraordinária influência na Europa cristã, tornando-se o modelo dos trabalhos de óptica de Robert Grosseteste e Roger Bacon. Nele, o físico apresenta o conceito de raio luminoso; nega a propagação instantânea da luz; e explica o fenômeno da refração pela diferença de velocidade com a qual a luz viaja nos diferentes meios materiais. Suas leis sobre a reflexão e a refração seriam utilizadas, ainda no século XVII, por Kepler e Descartes.
Aliando aos seus dons intelectuais uma notável habilidade manual, Ibn Al-Haytham construiu seus próprios instrumentos científicos e realizou importantes investigações anatômicas sobre a estrutura do olho. Rejeitando como absurda a idéia grega de que a visão emanava do próprio olho, ele a atribuiu à recepção da luz emitida ou refletida pelos corpos materiais, e destacou o papel desempenhado pelo nervo óptico e sua conexão com o cérebro.

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