O desafio do Islã - a esfinge da modernidade (Parte 02/06)
Fanatismo religioso versus tolerância
Importantes pensadores muçulmanos da atualidade afirmam que toda a riqueza de sua religião pode ser sintetizada em três afirmações fundamentais: só Deus sabe; só Deus possui; só Deus comanda. Esses princípios relativizam o conhecimento, a propriedade e o poder, permitindo-nos diferenciar o núcleo perene da fé das formas transitórias por ele assumidas. Quando se perde o contato com tais princípios, porém, isto é, quando os homens passam a se arvorar o direito divino de saber, possuir e comandar, essas formas transitórias adquirem o status de valores imutáveis, os aspectos circunstanciais da religião transformam-se em dogmas, e a crença viva degenera-se naquela doutrina exclusivista e fanática erroneamente chamada de fundamentalismo. A denominação é essencialmente incorreta, porque não há nada mais distante da vitalidade fundamental das religiões do que essas estruturas fossilizadas.
As duas principais estruturas políticas da civilização muçulmana tardia, o Império Mughal, na Índia, e o Império Otomano, na Europa Oriental e no Oriente Médio, foram minadas por sua incapacidade de acolher o diferente e absorver mudanças. A trajetória do Império Mughal é mais fácil de compreender. Seu declínio está intimamente associado ao fanatismo religioso de Aurangzeb, filho do célebre Shah Jahan, o construtor do Taj Mahal.
Contrastando com a visão grandiosa e magnânima de seu bisavô, o grande Akbar, que liberou a maioria hindu da obediência à legislação muçulmana e fez da Índia um raro exemplo de tolerância religiosa, acolhendo em sua própria corte sábios hindus, budistas e cristãos, Aurangzeb pautou-se por um fundamentalismo míope e mesquinho, impondo a Sharia, a lei islâmica, ao conjunto da população. Sob seu comando, milhares de templos e santuários hindus foram destruídos; a maioria hindu foi oprimida com impostos extorsivos; e guerras de rapina foram travadas contra os reinos hindus do sul.
O império alcançou o ápice de seu poderio militar, mas a energia criadora que produzira sua cultura luxuriante se esvaiu. Os imperadores que o sucederam logo se tornaram meros marionetes dos ingleses e franceses. E o último deles foi deposto pelos britânicos em 1858.
A trajetória do Império Otomano foi mais complexa e sua decadência, causada tanto pelo "fundamentalismo" religioso quanto por ingredientes não-muçulmanos incorporados à sua estrutura política. No rol desses ingredientes, três instituições foram especialmente aberrantes: a dos janízaros, a do fratricídio e a do harém. Detenhamo-nos um pouco nelas:
Janízaros - Este corpo de combatentes de elite era formado por filhos de cristãos, seqüestrados de suas famílias e transformados em escravos. Convertidos ao islamismo e submetidos a uma completa lavagem cerebral e a uma rígida disciplina militar, os meninos cresciam como guerreiros fanáticos, capazes de dar a vida pelo sultão.
Fratricídio - Para impedir o fracionamento do Império, devido à luta pelo poder entre os príncipes herdeiros, o sultão Selim introduziu um sistema drástico. Toda vez que um sultão ascendia ao trono, seus irmãos eram feitos prisioneiros. E executados, assim que o monarca tinha seu primeiro filho homem. O bárbaro procedimento, repetido de geração em geração, foi atenuado nos últimos tempos do Império, quando a execução se transformou em prisão perpétua.
Harém - Era no harém, cujo número de cuncubinas freqüentemente excedia a mil, que o sultão dissipava seu tempo e energia. Além de desviar a atenção do governante dos assuntos de Estado, a instituição constituía um ônus para o Tesouro, pois as famílias das infelizes mulheres, recrutadas nos quatro cantos do Império, recebiam expressivas compensações materiais. O único contingente masculino permanente no palácio real de Topkapi era constituído por eunucos. Apesar de seu poder absoluto, o próprio sultão era um virtual prisioneiro desse sistema insano, sendo obrigado a mudar de quarto toda a noite para preservar-se de eventuais atentados.
Esses três elementos não apenas eram estranhos aos costumes muçulmanos como constituíam uma afronta à piedade islâmica. Mas foi por meio deles que o Ocidente formou, ao longo de séculos, sua imagem deturpada do Islã. Quanto à própria civilização otomana, sua pujança inicial, alicerçada na ampla liberdade conferida à maioria cristã e na atração de comerciantes judeus, estagnou-se paulatinamente devido à rigidez das instituições.
Após governos brilhantes, como os de Mehmet II (que conquistou Constantinopla em 1453) e de Suleiman, o Magnífico (que reinou de 1520 a 1566, anexando os Bálcãs e a Hungria e levando suas tropas até os muros de Viena), o Império entrou em uma longa e dolorosa decadência, que faria com que os ocidentais o denominassem "o Homem Doente da Europa".
0 Response to "O desafio do Islã - a esfinge da modernidade (Parte 02/06)"
Postar um comentário