Dificuldades para a busca da verdade
Em nossa sociedade, é muito difícil despertar nas pessoas o
desejo de buscar a verdade. Pode parecer paradoxal que assim seja, pois
parecemos viver numa sociedade que acredita nas ciências, que luta por escolas,
que recebe durante 24 horas diárias informações vindas de jornais, rádios e
televisões, que possui editoras, livrarias, bibliotecas, museus, salas de
cinema e de teatro, vídeos, fotografias e computadores.
Ora, é justamente essa enorme quantidade de veículos e
formas de informação que acaba tornando tão difícil a busca da verdade, pois
todo mundo acredita que está recebendo, de modos variados e diferentes,
informações científicas, filosóficas, políticas, artísticas e que tais
informações são verdadeiras, sobretudo porque tal quantidade informativa
ultrapassa a experiência vivida pelas pessoas, que, por isso, não têm meios
para avaliar o que recebem.
Bastaria, no entanto, que uma mesma pessoa, durante uma
semana, lesse de manhã quatro jornais diferentes e ouvisse três noticiários de
rádio diferentes; à tarde, freqüentasse duas escolas diferentes, onde os mesmos
cursos estariam sendo ministrados; e, à noite, visse os noticiários de quatro
canais diferentes de televisão, para que, comparando todas as informações
recebidas, descobrisse que elas “não batem” umas com as outras, que há vários
“mundos” e várias “sociedades” diferentes, dependendo da fonte de informação.
Uma experiência como essa criaria perplexidade, dúvida e
incerteza. Mas as pessoas não fazem ou não podem fazer tal experiência e por
isso não percebem que, em lugar de receber informações, estão sendo
desinformadas. E, sobretudo, como há outras pessoas (o jornalista, o
radialista, o professor, o médico, o policial, o repórter) dizendo a elas o que
devem saber, o que podem saber, o que podem e devem fazer ou sentir, confiando
na palavra desses “emissores de mensagens”, as pessoas se sentem seguras e
confiantes, e não há incerteza porque há ignorância.
Uma outra dificuldade para fazer surgir o desejo da busca
da verdade, em nossa sociedade, vem da propaganda.
A propaganda trata todas as pessoas – crianças, jovens,
adultos, idosos – como crianças extremamente ingênuas e crédulas. O mundo é sempre
um mundo “de faz-de-conta”: nele a margarina fresca faz a família bonita,
alegre, unida e feliz; o automóvel faz o homem confiante, inteligente, belo,
sedutor, bem-sucedido nos negócios, cheio de namoradas lindas; o desodorante
faz a moça bonita, atraente, bem empregada, bem vestida, com um belo
apartamento e lindos namorados; o cigarro leva as pessoas para belíssimas
paisagens exóticas, cheias de aventura e de negócios coroados de sucesso que
terminam com lindos jantares à luz de velas.
A propaganda nunca vende um produto dizendo o que ele é e
para que serve. Ela vende o produto rodeando-o de magias, belezas, dando-lhe
qualidades que são de outras coisas (a criança saudável, o jovem bonito, o
adulto inteligente, o idoso feliz, a casa agradável, etc.), produzindo um
eterno “faz-de-conta”.
Uma outra dificuldade para o desejo da busca da verdade vem
da atitude dos políticos nos quais as pessoas confiam, ouvindo seus programas,
suas propostas, seus projetos enfim, dando-lhes o voto e vendo-se, depois,
ludibriadas, não só porque não são cumpridas as promessas, mas também porque há
corrupção, mau uso do dinheiro público, crescimento das desigualdades e das
injustiças, da miséria e da violência.
Em vista disso, a tendência das pessoas é julgar que é
impossível a verdade na política, passando a desconfiar do valor e da
necessidade da democracia e aceitando “vender” seu voto por alguma vantagem
imediata e pessoal, ou caem na descrença e no ceticismo.
No entanto, essas dificuldades podem ter o efeito oposto,
isto é, suscitar em muitas pessoas dúvidas, incertezas, desconfianças e
desilusões que as façam desejar conhecer a realidade, a sociedade, a ciência,
as artes, a política. Muitos começam a não aceitar o que lhes é dito. Muitos
começam a não acreditar no que lhes é mostrado. E, como Sócrates em Atenas,
começam a fazer perguntas, a indagar sobre fatos e pessoas, coisas e situações,
a exigir explicações, a exigir liberdade de pensamento e de conhecimento.
Para essas pessoas, surge o desejo e a necessidade da busca
da verdade. Essa busca nasce não só da dúvida e da incerteza, nasce também da
ação deliberada contra os preconceitos, contra as idéias e as opiniões
estabelecidas, contra crenças que paralisam a capacidade de pensar e de agir
livremente.
Podemos, dessa maneira, distinguir dois tipos de busca da
verdade. O primeiro é o que nasce da decepção, da incerteza e da insegurança e,
por si mesmo, exige que saiamos de tal situação readquirindo certezas. O
segundo é o que nasce da deliberação ou decisão de não aceitar as
certezas e crenças estabelecidas, de ir além delas e de encontrar explicações,
interpretações e significados para a realidade que nos cerca. Esse segundo tipo
é a busca da verdade na atitude filosófica.
Podemos oferecer dois exemplos célebres dessa busca
filosófica. Já falamos do primeiro: Sócrates andando pelas ruas e praças de
Atenas indagando aos atenienses o que eram as coisas e idéias em que
acreditavam. O segundo exemplo é o do filósofo Descartes.
Descartes começa sua obra filosófica fazendo um balanço de
tudo o que sabia: o que lhe fora ensinado pelos preceptores e professores,
pelos livros, pelas viagens, pelo convívio com outras pessoas. Ao final,
conclui que tudo quanto aprendera, tudo quanto sabia e tudo quanto conhecera
pela experiência era duvidoso e incerto. Decide, então, não aceitar nenhum
desses conhecimentos, a menos que pudesse provar racionalmente que eram certos
e dignos de confiança. Para isso, submete todos os conhecimentos existentes em
suas época e os seus próprios a um exame crítico conhecido como dúvida
metódica, declarando que só aceitará um conhecimento, uma idéia, um fato ou
uma opinião se, passados pelo crivo da dúvida, revelarem-se indubitáveis para o
pensamento puro. Ele os submete à análise, à dedução, à indução, ao raciocínio
e conclui que, até o momento, há uma única verdade indubitável que poderá ser
aceita e que deverá ser o ponto de partida para a reconstrução do edifício do
saber.
Essa única verdade é: “Penso, logo existo”, pois, se eu
duvidar de que estou pensando, ainda estou pensando, visto que duvidar é uma
maneira de pensar. A consciência do pensamento aparece, assim, como a primeira
verdade indubitável que será o alicerce para todos os conhecimentos futuros.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São
Paulo: Ed. Ática, 2000.
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