Dogmatismo e busca da verdade
Quando prestamos atenção em Sócrates ou Descartes, notamos
que ambos, por motivos diferentes e usando procedimentos diferentes, fazem uma
mesma coisa, isto é, desconfiam das opiniões e crenças estabelecidas em suas
sociedades, mas também desconfiam das suas próprias idéias e opiniões. Do que
desconfiam eles, afinal? Desconfiam do dogmatismo.
O que é dogmatismo?
Dogmatismo é uma atitude muito natural e muito espontânea
que temos, desde muito crianças. É nossa crença de que o mundo existe e que é
exatamente tal como o percebemos. Temos essa crença porque somos seres
práticos, isto é, nos relacionamos com a realidade como um conjunto de coisas,
fatos e pessoas que são úteis ou inúteis para nossa sobrevivência.
Os seres humanos, porque são seres culturais, trabalham. O
trabalho é uma ação pela qual modificamos as coisas e a realidade de modo a
conseguir nossa preservação na existência. Constroem casas, fabricam vestuário
e utensílios, produzem objetos técnicos e de consumo, inventam meios de
transporte, de comunicação e de informação. Através da prática ou do trabalho e
da técnica, os seres humanos organizam-se social e politicamente, criam
instituições sociais (família, escola, agricultura, comércio, indústria,
relações entre grupos e classes, etc.) e instituições políticas (o Estado, o
poder executivo, legislativo e judiciário, as forças militares profissionais,
os tribunais e as leis).
Essas práticas só são possíveis porque acreditamos que o
mundo existe, que é tal como o percebemos e tal como nos ensinaram que ele é,
que pode ser modificado ou conservado por nós, que é explicado pelas religiões
e pelas ciências, que é representado pelas artes. Acreditamos que os outros
seres humanos também são racionais, pois, graças à linguagem, trocamos idéias e
opiniões, pensamos de modo muito parecido e a escola e os meios de comunicação
garantem a manutenção dessas semelhanças.
Na atitude dogmática, tomamos o mundo como já dado, já
feito, já pensado, já transformado. A realidade natural, social, política e
cultural forma uma espécie de moldura de um quadro em cujo interior nos
instalamos e onde existimos. Mesmo quando acontece algo excepcional ou
extraordinário (uma catástrofe, o aparecimento de um objeto inteiramente novo e
desconhecido), nossa tendência natural e dogmática é a de reduzir o excepcional
e o extraordinário aos padrões do que já conhecemos e já sabemos. Mesmo quando
descobrimos que alguma coisa é diferente do que havíamos suposto, essa
descoberta não abala nossa crença e nossa confiança na realidade, nem nossa
familiaridade com ela.
O mundo é como a novela de televisão: muita coisa acontece,
mas, afinal, nada acontece, pois quando a novela termina, os bons foram
recompensados, os maus foram punidos, os pobres bons ficaram ricos, os ricos
maus ficaram pobres, a mocinha casou com o mocinho certo, a família boa se
refez e a família má se desfez. Em outras palavras, os acontecimentos da novela
servem apenas para confirmar e reforçar o que já sabíamos e o que já
esperávamos. Tudo se mantém numa atmosfera ou num clima de familiaridade, de
segurança e sossego.
Na atitude dogmática ou natural, aceitamos sem nenhum
problema que há uma realidade exterior a nós e que, embora externa e diferente
de nós, pode ser conhecida e tecnicamente transformada por nós. Achamos que o
espaço existe, que nele as coisas estão como num receptáculo; achamos que o
tempo também existe e que nele as coisas e nós próprios estamos submetidos à
sucessão dos instantes.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite
à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.
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