Dogmatismo e estranhamento
Escutemos, porém, por um momento, a indagação de santo
Agostinho, em suas Confissões:
O que é o tempo? Tentemos fornecer uma explicação fácil e
breve. O que há de mais familiar e mais conhecido do que o tempo? Mas, o que é
o tempo? Quando quero explicá-lo, não encontro explicação. Se eu disser que o
tempo é a passagem do passado para o presente e do presente para o futuro,
terei que perguntar: Como pode o tempo passar? Como sei que ele passa? O que é
um tempo passado? Onde ele está? O que é um tempo futuro? Onde ele está? Se o
passado é o que eu, do presente, recordo, e o futuro é o que eu, do presente,
espero, então não seria mais correto dizer que o tempo é apenas o presente?
Mas, quanto dura um presente? Quando acabo de colocar o ‘r’ no verbo ‘colocar’,
este ‘r’ é ainda presente ou já é passado? A palavra que estou pensando em
escrever a seguir, é presente ou é futuro? O que é o tempo, afinal? E a
eternidade?
As coisas são mesmo tais como me aparecem? Estão no
espaço? Mas, o que é o espaço? Se eu disser que o espaço é feito de
comprimento, altura e largura, onde poderei colocar a profundidade, sem a qual
não podemos ver, não podemos enxergar nada? Mas a profundidade, que me permite
ver as coisas espaciais, é justamente aquilo que não vejo e que não posso ver,
se eu quiser olhar as coisas. A profundidade é ou não espacial? Se for
espacial, por que não a vejo no espaço? Se não for espacial, como pode
ser a condição para que eu veja as coisas no espaço?
Acompanhemos agora os versos do poeta Mário de Andrade,
escritos no poema “Lira Paulistana”:
Garoa do meu São Paulo
Um negro vem vindo, é branco!
Só bem perto fica negro,
Passa e torna a ficar branco.
Meu São Paulo da garoa,
- Londres das neblinas frias -
Um pobre vem vindo, é rico!
Só bem perto fica pobre,
Passa e torna a ficar rico.
Esses versos, nos quais a garoa de São Paulo se parece com
a neblina de Londres, isto é, com um véu denso de ar úmido, dizem que não
conseguimos ver a realidade: o negro, de longe, é branco, o pobre, de longe, é
rico; só muito de perto, sem o véu da garoa, o negro é negro e o pobre é pobre.
Mas, apesar de vê-los de perto tais como são, de longe voltam a ser o que não
são.
O poeta exprime um dos problemas que mais fascinam a
Filosofia: Como a ilusão é possível? Como podemos ver o que não é? Mas,
conseqüentemente, como a verdade é possível? Como podemos ver o que é, tal como
é? Qual é a “garoa” que se interpõe entre o nosso pensamento e a realidade?
Qual é a “garoa” que se interpõe entre nosso olhar e as coisas?
A atitude dogmática ou natural se rompe quando somos
capazes de uma atitude de estranhamento diante das coisas que nos pareciam familiares.
Dois exemplos podem ilustrar essa capacidade de estranhamento, ambos da
escritora Clarice Lispector em seu livro A descoberta do mundo. O
primeiro tem como título “Mais do que um inseto”.
Custei um pouco a compreender o que estava vendo, de tão inesperado
e sutil que era: estava vendo um inseto pousado, verde-claro, de pernas altas.
Era uma ‘esperança’, o que sempre me disseram que é de bom augúrio. Depois a
esperança começou a andar bem de leve sobre o colchão. Era verde transparente,
com pernas que mantinham seu corpo plano alto e por assim dizer solto, um plano
tão frágil quanto as próprias pernas que eram feitas apenas da cor da casca.
Dentro do fiapo das pernas não havia nada dentro: o lado de dentro de uma
superfície tão rasa já é a própria superfície. Parecia um raso desenho que
tivesse saído do papel, verde e andasse… E andava com uma determinação de quem
copiasse um traço que era invisível para mim… Mas onde estariam nele as
glândulas de seu destino e as adrenalinas de seu seco verde interior? Pois era
um ser oco, um enxerto de gravetos, simples atração eletiva de linhas verdes.
O outro se intitula “Atualidade do ovo e da galinha” e nele
podemos ler o seguinte trecho:
Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não
se pode estar vendo um ovo apenas: ver o ovo é sempre hoje; mal vejo o ovo e já
se torna ter visto um ovo, o mesmo, há três milênios. No próprio instante de se
ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. Só vê o ovo quem já o tiver visto… Ver
realmente o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos
que o ouvido já não ouve. Ninguém é capaz de ver o ovo… O ovo é uma coisa
suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou, foi uma
superfície que veio ficar embaixo do ovo… O ovo é uma exteriorização: ter uma
casca é dar-se… O ovo expõe tudo.
À primeira vista, que há de mais banal ou familiar do que
um inseto ou um ovo? No entanto, Clarice Lispector nos faz sentir admiração e
estranhamento, como se jamais tivéssemos visto um inseto ou um ovo. Nas duas
descrições maravilhadas, um ponto é comum: o inseto e o ovo têm a peculiaridade
de serem superfícies nas quais não conseguimos distinguir ou separar o fora e o
dentro, o exterior e o interior; a ‘esperança’ verde é como um traçado – letra,
desenho – sobre a superfície do papel; o ovo é uma casca que expõe tudo.
No entanto, nesses dois seres sem profundidade, há um
abismo misterioso: todo ovo é igual a todo ovo e por isso não temos como ver
“um” ovo, embora ele esteja diante de nossos olhos; e o inseto ‘esperança’ é um
oco, um vazio colorido (como um vazio pode ter cor?) ou uma cor sem corpo (como
uma cor pode existir sem um corpo colorido?).
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite
à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.
0 Response to "Dogmatismo e estranhamento"
Postar um comentário