O sentido das palavras
A mesma estranheza pode ser encontrada num poema de Carlos
Drummond, mas agora relativa à linguagem. Usamos todos os dias as palavras como
instrumentos dóceis e disponíveis, como se sempre estivessem estado prontas
para nós, com seu sentido claro e útil. O poeta, porém, aconselha:
Penetra surdamente no reino das palavras.
…
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Se as palavras tivessem sempre um sentido óbvio e único,
não haveria literatura, não haveria mal-entendido e controvérsia. Se as
palavras tivessem sempre o mesmo sentido e se indicassem diretamente as coisas
nomeadas, como seria possível a mentira? É por isso que o poeta Fernando
Pessoa, em versos famosos, escreveu:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor,
A dor que deveras sente.
O poeta é um “finge-dor” e seu fingimento – isto é, sua
criação artística – é tão profundo e tão constitutivo de seu ser de poeta, que
ele finge – isto é, transforma em poema, em obra de arte – a dor que deveras ou
de verdade sente. A palavra tem esse poder misterioso de transformar o que não
existe em realidade (o poeta finge) e de dar a aparência de irrealidade ao que
realmente existe (o poeta finge a dor que realmente sente).
Na tragédia Otelo, de Shakespeare, o mouro Otelo,
apaixonado perdidamente por sua jovem esposa, Desdêmona, acaba por assassiná-la
porque foi convencido por Iago de que ela o traía. Iago, invejoso dos cargos
que Otelo daria a um outro membro de sua corte, inventou a traição de
Desdêmona, mentiu para Otelo e este, tomando a mentira pela verdade, destruiu a
pessoa amada, que morreu afirmando sua inocência. Para construir a mentira,
Iago despertou em Otelo o ciúme, caluniando Desdêmona. Usou vários
estratagemas, mas sobretudo usou a linguagem, isto é, palavras falsas que
envenenaram o espírito de Otelo.
Como é possível que as palavras ou que a linguagem tenham o
poder para tornar o verdadeiro, falso, e fazer do falso, verdadeiro? Como seria
uma sociedade na qual a mentira fosse a regra e, portanto, na qual não
conseguíssemos nenhuma informação, por menor que fosse, que tivesse alguma
veracidade? Como faríamos para sobreviver, se tudo o que nos fosse dito fosse
mentira? Perguntas e respostas seriam inúteis, a desconfiança e a decepção
seriam as únicas formas de relação entre as pessoas e tal sociedade seria a
imagem do Inferno.
Essa sociedade infernal é criada pelo escritor George
Orwell, no romance 1984. Orwell descreve uma sociedade totalitária que
controla todos os gestos, atos, pensamentos e palavras de seus membros. Estes,
todos os dias, entram num cubículo onde uma teletela exibe o rosto do grande
chefe, o Grande Irmão, que, pela mentira e pelo medo, domina o espírito da
população, falando diariamente com cada um.
Nessa sociedade, é instituído o Ministério da Verdade, no
qual, todos os dias, os fatos reais são modificados em narrativas ou relatos
falsos, são omitidos, são apagados da História e da memória, como se nunca
tivessem existido. O Ministério da Verdade cria a mentira como instituição
social. O poder cria a Novi-Língua, isto é, inventa palavras e destrói outras;
as inventadas são as que estão a serviço da mentira institucionalizada e as
destruídas são as que poderiam fazer aparecer a mentira. A negação da verdade
é, assim, usada para manter uma sociedade inteira enganada e submissa.
Quando vemos o modo como os meios de comunicação funcionam,
podemos perguntar se 1984 é uma simples ficção ou se realmente existe,
sem que o saibamos.
Como é possível que a linguagem tenha tamanho poder
mistificador? E, ao mesmo tempo, como é possível que, em todas as culturas, na
relação entre os homens e a divindade, entre o profano e o sagrado, o papel fundamental
de revelação da verdade seja sempre dado à linguagem, à palavra sagrada e
verdadeira que os deuses dizem aos homens? Como uma mesma coisa – a palavra, o
discurso – pode ser origem, ao mesmo tempo, da verdade e da falsidade? Como a
linguagem pode mostrar e esconder?
Como essa duplicidade misteriosa da linguagem pode servir
para manter o dogmatismo? Mas também, como pode despertar o desejo de verdade?
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite
à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.
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