"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A Amizade (Parte 02/07)

Pe. Antônio Vieira

A Amizade como uma questão para a Ética

A amizade foi também motivo de investigação em Aristóteles na obra, Ética a Nicômacos, nos livros IX e X, discorre de forma minuciosa e exaustiva sobre o tema.

A amizade parece também manter as cidades unidas, e parece que os legisladores se preocupam mais com ela do que com a justiça; efetivamente a concórdia parece assemelhar-se à amizade, e eles procuram assegurá-la mais do que tudo, ao mesmo tempo que repelem tanto quanto possível o facciosismo, que é a inimizade nas cidades. Quando as pessoas não têm necessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas elas necessitam da amizade; considera-se que a mais autêntica forma de justiça é uma disposição amistosa.
E a amizade não é somente necessária; ela também é nobilitante, pois louvamos as pessoas amigas de seus amigos, e pensamos que uma das coisas mais nobilitantes é ter muitos amigos; além disto, há quem diga que a bondade e a amizade se encontram nas mesmas pessoas. (Aristóteles, 2001, p.153-154)

Aristóteles apresenta a amizade como fundamental para a união das cidades e dos povos. A inimizade entre as cidades e países gera conflitos e guerras, por isso a preocupação dos legisladores em evitar que haja divisões.
Para entender melhor a questão da amizade como uma questão ética é preciso ter claro o que Aristóteles pressupõe, ou seja, os valores que fundamentam e dão sustentação à amizade. A amizade perfeita, que poderíamos aqui denominar de verdadeira, ocorre entre pessoas boas e inexiste a calúnia, pois há confiança e sinceridade, já que pessoas boas gostam do que é bom. E por que Aristóteles diz isso? Por entender que “(...) aquilo que é irrestritamente bom e agradável parece ser estimável e desejável, e para cada pessoa o bom ou o agradável é aquilo que é bom ou agradável para ela; e uma pessoa boa é desejável e estimável para outra pessoa por ambas estas razões [...] a pessoa boa, tornando-se amiga, torna-se um bem para seu amigo” (ARISTÓTELES, 2001, p.159).
Então a amizade para Aristóteles está diretamente ligada à bondade. E a bondade é algo agradável e desejável e por isso torna-se busca para as pessoas boas. Mas o que nos torna bons, segundo Aristóteles, é o fato de agirmos de forma acertada, buscando em tudo a mediania, o equilíbrio em nossas ações e diante de nossas emoções. A amizade está relacionada a esta mediania, equilíbrio por ter como características e causas a boa disposição e a sociabilidade, pois “(...) as pessoas boas são ao mesmo tempo agradáveis e úteis. (ARISTÓTELES, 2001, p. 160)
Ao mesmo tempo em que Aristóteles apresenta as características e causas da amizade e as afirma nas pessoas boas, procura destacar que nem sempre as pessoas estão em igualdade de situação nas relações de amizade. E passa a relacionar as espécies de amizade em que há a superioridade de uma das partes. São os casos de amizade entre pai e filho, pessoas idosas e jovens, marido e mulher e em geral, entre quem manda e quem obedece. São amizades que diferem entre si pois a excelência moral e suas funções, bem como as razões de envolvimento das pessoas são diferentes. Nestas amizades “(...) os benefícios que cada parte recebe e pode pretender da outra não são os mesmos da outra”. (ARISTÓTELES 2001, p. 161) Sendo assim, nestes tipos de amizade o que ocorre é a diferença na proporcionalidade de amor que cada uma das partes recebe e tem para com a outra. Então, se na justiça “(...)o que é igual no sentido primordial é aquilo que é proporcional ao merecimento”; na amizade “(...) a igualdade quantitativa é primordial e a proporcionalidade ao merecimento é secundária”. (ARISTÓTELES 2001, p. 161)
Segundo Aristóteles, isto é mais evidente em casos onde “(...) há um grande desequilíbrio entre as partes em relação à excelência moral ou à deficiência moral ou à riqueza ou à qualquer outra coisa”. (ARISTÓTELES, 2001, p. 161) São exemplos disso os deuses e os reis e as pessoas melhores e sábias.

A maioria das pessoas, por causa de sua ambição, parece que prefere ser amada a amar, e é por isto que a maioria gosta de ser adulada; efetivamente, o adulador é um amigo de qualidade inferior, ou que tem a pretensão de ser amigo e quer estimar mais do que ser estimado; ser estimado é quase a mesma coisa que receber honrarias, e é a estas que a maioria das pessoas aspira. (ARISTÓTELES, 2001, p. 162)

Pelo fato de haver proporcionalidade ao merecimento no caso da amizade ser secundário, já que há relações de amizade em que há superioridade de uma das partes, Aristóteles alerta que por ser comum as pessoas preferirem serem amadas a amarem, ou seja, serem aduladas, atraírem para junto de si amigos de qualidade inferior: o adulador.
Sendo a amizade fundamental para a vida em sociedade, seus desvios podem gerar em contrapartida problemas sociais. Será isso realmente possível?
No Brasil, no século XVII, um dos homens mais notáveis da época, padre Antônio Vieira, em um de seus sermões ilustra o risco apresentado por Aristóteles em relação aos amigos de qualidade inferior.
Antônio Vieira, um dos grandes pregadores, que tinha acesso a corte portuguesa, vivera e pregara no Maranhão grande parte de sua vida. Em suas pregações falava aos nobres e, até mesmo, aos escravos. No conjunto de seus sermões encontra-se inclusive o Sermão à Irmandade dos Pretos de um engenho, 1633, que foi uma pregação para os negros no dia da festa do evangelista São João e o Sermão do Rosário.
No Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma, na Capela Real, no ano de 1651, com o mote: “Mas eu vos digo: Amai a vossos inimigos, fazei o bem aos que vos têm ódio” (Mt 5,44), Vieira discute se os reis estão ou não dispensados de amar seus inimigos. Discute quem seriam de fato os inimigos dos reis e príncipes. Ao fazê-lo apresenta uma distinção entre os inimigos e as hostes. Os inimigos seriam os de dentro do reino e as hostes seriam os estranhos, os de fora, os que fazem guerra ao reino, combatem e são combatidos.
Porém, entendendo as hostes como aqueles que combatem e são combatidos em busca de interesses e conquistas entendidas como legítimas, até mesmo com o uso da violência e da guerra, Vieira alerta que o pior e real inimigo do rei não são as hostes, mas “(...) os domésticos, os familiares, os que são admitidos a ouvir e ser ouvidos, êstes (sic) são os aduladores, e por isso, os inimigos”. (VIEIRA, 1957, p. 360-361)
Por que, segundo Vieira, o adulador é o principal e único inimigo dos reis? Porque “(...) a intenção reta dos príncipes não é esta, senão que cada um diga livremente o que entende, e aconselhem o que mais importa; mas, como o norte sempre fixo do adulador é o interesse e a convivência própria, nenhum há que se fie deste seguro real, e todos temem arriscar a graça onde têm posta a esperança. (VIEIRA, 1957, p. 374)
Mesmo pregando na Capela Real, onde com certeza estava o rei e toda sua corte reunida, já que Vieira era um orador que tinha grande prestígio e público, não mede as palavras e é contundente ao afirmar que: “Tão certa é a proposição do nosso assunto, e tão verdadeira e sólida a razão fundamental dêle (sic), que todos os que em palácio são amigos do interesse, são amigos do rei”. (VIEIRA, 1957, p. 380)
Vieira, assim como Aristóteles orientara, alerta reis e príncipes para o cuidado com suas amizades, uma vez que as mesmas, pelo fato de serem eles, pessoas melhores, segundo Aristóteles, e com mais dignidade e soberania, segundo Vieira, correm o risco de estarem cercados de aduladores que irão ofuscá-los com bajulações e causar-lhes a ruína de si mesmos e do reino.

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