A oposição parte para a luta armada
O que significa viver sob uma ditadura militar? É exagerado achar que a
toda hora tem tanque na rua, soldados desfilando dentro das faculdades.
Aparentemente não muda muita coisa, porque você vai às compras, ao dentista, à
praia e ao cinema, namora e casa, vê televisão. A não ser o fato de que seu
vizinho é oficial do Exército e você sabe que por isso ele manda aqui no prédio
(e isso pode ser até bom para a vizinhança), o resto parece bem normal. Mas, se
você tiver um pingo de consciência, desconfia que as coisas não vão bem. Existe
um cheirinho de esquisitice: as pessoas falam baixo, há uma nuvem de mistério
cobrindo o país, o estômago fica pesado demais.
Depois de 1964 ainda dava para fazer umas passeatazinhas e desafiar o
regime. Depois do AI-5 (dezembro de 1968) o regime tinha fechado de vez.
Passeata era dissolvida a tiros de fuzil. Em cada redação de jornal havia um
imbecil da polícia federal para fazer a censura, Não poderia sair nenhuma
notícia que desagradasse ao governo. Uma simples reportagem esportiva sobre o time
do Internacional de Porto Alegre, com sua camisa vermelha, poderia ser encarada
como “propaganda da Internacional Comunista”. Além da censura, o jornal não
podia dizer que tinha sofrido a censura (isso, claro, também era censurado). O
jeito foi botar receitas de bolo nos vazios deixados pelas partes retiradas
pela polícia. As pessoas estavam lendo uma página sobre política nacional e, de
repente, vinha aquela absurda receita para fazer uma torta de abacaxi. Os
espertos sacavam logo que era um protesto. Os mais ingênuos (por conivência ou
conveniência, chegavam a mandar cartas para as redações dos jornais, pois as
receitas, por vezes, eram irracionais: “cinco quilos de açúcar, 100 g de
farinha de trigo, dois quilos de sal, vinte tabletes de fermento, uma colher de
chá de suco de laranja...” Não há receita que dê certo assim, hehehe. Claro que
existem ainda hoje ingênuos ainda mais imbecis, que declaram coisas como:
“naquele tempo o governo era muito melhor do que hoje. Bastava abrir os
jornais, eles só tinham elogios para o governo. Aliás, também tinham receitas
de bolo muito boas.”
Ninguém podia falar mal do governo. Reclamação na fila do ônibus era uma
linha até à cadeia. Estudantes e professores que conversassem sobre política
poderiam ser expulsos da escola ou da faculdade, devido ao decreto-lei nº 477
(1969), Imagine o clima dentro da sala de aula. Se o professor contasse aos
alunos o que você está lendo neste livro, corria o sério risco de não poder
voltar mais à sala de aula. Ou mesmo para a sua própria casa...
- O que você acha da situação atual?
- Eu não acho nada! Tinha um amigo que achava muito e hoje ninguém acha
ele! To fora!
Qualquer aluno novo que tentasse se enturmar era logo suspeito de
pertencer ao SNI. Veja que coisa, a ditadura tolheu até as novas amizades!
O político que fizesse oposição aguda seria logo cassado pelo AI-5. Foi
o caso, por exemplo, do deputado federal Francisco Pinto (MDB), punido em 1974
porque fez no Congresso um discurso chamando de “ditador” o ditador chileno
Pinochet em visita ao Brasil; o deputado Lysâneas Maciel (MDB) solicitou a
criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar denúncias de
corrupção no regime. Não teve CPI nenhuma e ele ainda foi cassado. É isso aí:
numa ditadura, a sociedade não pode fiscalizar o governo. Os cidadãos estão
enjaulados, mas a corrupção está livre.
Com tantas dificuldades, como continuar fazendo oposição ao regime? Para
muitos jovens, só havia um caminho a seguir: a luta armada.
Falar em guerrilha nos anos 60 arrepiava muita gente. Ela parecia ser a
grande arma de libertação dos povos do Terceiro Mundo. Exemplos não faltavam.
Em Cuba, Fidel Castro e Che Guevara abriram o caminho: No Vietnã, os
guerrilheiros de Ho Chi Minh derrotavam a maior máquina de guerra do planeta, a
do imperialismo norte-americano. Na Argélia, os guerrilheiros dobraram as
tropas francesas e conquistaram a independência do país. Na própria China, a
revolução socialista foi vitoriosa depois de anos de guerrilha camponesa
comandada por Mao Tse-Tung. No Brasil não poderia ser diferente: muitos
estudantes, velhos militantes da esquerda e intelectuais começaram a organizar
grupos guerrilheiros. Para eles, depois do AI-5 não havia mais espaço para a
legalidade. Só a luta armada libertaria o Brasil.
Ao contrário do que você possa pensar, o PCB foi contra a luta armada.
Os comunistas acreditavam que a luta no momento não era nem socialismo nem
reformas básicas, mas pelo fim do regime autoritário. Sua estratégia era a de
se unir a todos os grupos democráticos contra o regime. Atuaria, clandestino,
no MDB.
Muita gente da esquerda considerou esse programa covarde, reformista (um
xingamento horroroso, pois isso equivaleria a não ser um revolucionário. Mas
naquele momento os comunistas eram qualquer coisa, menos revolucionários...). A
juventude queria a mudança logo, a todo preço. E foram esses jovens, garotões e
meninas, adolescentes ainda, estudantes e sonhadoras, que embarcaram na
aventura da luta armada.
Um dos grandes gurus era o francês Regis Debray, que tinha sido
companheiro de guerrilha de Che Guevara. Foi ele que lançou a teoria foquista:
meia dúzia de combatentes criariam um foco guerrilheiro numa área rural.
Primeira etapa, o treinamento militar. Depois, contato com a população. Ganham
a confiança através do trabalho, da honestidade, de solidariedade. Imagine o
efeito disso: o camponês jamais viu um médico e, de repente, aquelas pessoas o
tratam com cuidado, curam seus filhos. Nesse processo, os guerrilheiros vão
transmitindo suas idéias, mostrando que o latifúndio deveria ser confiscado,
que os camponeses precisam se unir e se armar. E quando chegam os jagunços do
fazendeiro, os guerrilheiros estão prontos para responder com fogo de armas de
guerra, Pronto, está deflagrada a luta. Agora, junto com os camponeses que
aderem ao movimento, eles se lançam para o mato. O Exército chega logo depois,
quase sempre truculento: tortura moradores, incendeia barracos, molesta as
meninas. O povo vê com clareza quem está do lado dele. Os guerrilheiros, por
sua vez, nunca enfrentam o Exército de frente. As táticas incluem emboscadas,
ações rápidas e fulminantes. Depois, a fuga veloz: sua mobilidade e ataques de
surpresa são armas letais. Conhecem a região, contam com o apoio logístico dos
moradores. Quase invencíveis. Mas este é um foco. A teoria foquista imaginava
que surgiria outro foco ali, e mais outro adiante, e outro, e outro. Até que um
dia esses focos começariam a se unir para compor um grande exército popular.
Tal como ensinou Mao Tse-Tung, o campo cercaria a cidade. E a revolução seria
vitoriosa.
Simples, não? É, simples demais para dar certo: havia muitos sonhos e
pouco pé no chão. Como fazer guerrilha camponesa num país em que a maioria já
vivia na cidade? Bem que o sinal de alerta já havia sido dado: em 8 de outubro
de 1967, Che Guevara foi assassinado pela CIA, quando organizava um foco
guerrilheiro na Bolívia. Não era um aviso de mau agouro?
Desde 1968 já existiam ações guerrilheiras. Mas o grosso mesmo foi entre
1969 e 1973. Havia um cacho de grupos de luta armada, diferentes nos objetivos
e nas estratégias, embora no final todos visassem ao socialismo (já se disse
que as esquerdas só se encontram na cadeia...). Uns achavam que primeiro era
preciso derrotar a ditadura, outros achavam que já era possível lutar
imediatamente pelo socialismo; uns achavam que primeiro era preciso organizar
os trabalhadores e depois se lançar na guerrilha, outros achavam que através da
luta guerrilheira os trabalhadores iriam se organizando; uns achavam que a
guerrilha urbana era a mais importante, outros, que era a rural.
Não vamos estudar as minúcias das organizações. Basta dar uma idéia
geral de como funcionavam as mais importantes: VPR (Vanguarda Popular
Revolucionária), o MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro), a ALN (Ação
Libertadora Nacional), o PCBR (PCB Revolucionário), o PC do B, a VAR-Palmares.
Quem eram esses guerrilheiros? Não eram muitos, apenas algumas centenas.
Os simpatizantes, que eventualmente podiam esconder alguém em casa ou
contribuir com dinheiro, não iam além de uns mil e poucos. Apesar de sonharem
com a revolução proletária, havia poucos operários ou camponeses. Os líderes
geralmente eram antigos comunistas, rompidos com o Partidão porque o PCB estava
contra a luta armada. Ainda tinha um grupo importante de militares desertores
do Exército. Muitos guerrilheiros eram como talvez você seja, amigo leitor, com
17 ou 18 anos de idade, estudantes secundaristas ou acabando de entrar na
faculdade.
A maioria dos guerrilheiros foi presa antes de começar a luta armada no
campo. Na verdade, a guerrilha ficou sendo urbana mesmo, sem repercussão maior.
Houve algumas tentativas de panfletar na porta de fábricas, e um grupo chegou a
levar um caminhão cheio de comida para distribuir na favela, anunciando aquela
como “a primeira das muitas expropriações revolucionárias que o povo fará daqui
em diante”. Pura ilusão. A repressão do governo agia com muita eficácia e
rapidamente os grupos foram desmantelados. No final, tinham de assaltar bancos
para levantar fundos para a luta e sequestrar embaixadores em troca da
libertação de presos políticos.
Desde o início a guerrilha já tinha muitos erros. Para começar, os
guerrilheiros consideravam-se marxistas, mas quase nada tinham lido a respeito.
Ninguém tinha feito uma análise profunda da sociedade brasileira para ter
certeza de que aquela era a melhor estratégia a ser seguida. Por exemplo,
sonhavam com uma guerrilha camponesa num país enorme que já era urbano e
industrial. Queriam buscar seus próprios caminhos políticos, mas no fundo
imitavam modelos de outros países, como Cuba e China. Falavam em nome dos
trabalhadores, mas jamais tiveram um contato maior com a população. O povo,
dominado pela propaganda oficial e pela imprensa censurada, os ignorava ou os
tratava como bandidos, sequestradores, assaltantes de banco, “terroristas”.
Viviam tão fora da realidade, que só faltaram dizer que as vitórias do governo,
pulverizando a guerrilha, eram “a mostra do desespero da burguesia em sua crise
final”. Coitados, eram rapazes e moças que nunca tinham visto um revólver na
vida enfrentando um Exército profissional bem equipado e com assessoria dos
EUA. Nem dava para começar.
A única tentativa que teve alguma consistência foi a Guerrilha do Araguaia. Ela se
desenvolveu mais ou menos entre 1972 e 1974, organizada pelo PC do B. Lembremos
que, na época, ao contrário do PCB (que era de linha soviética e contra a luta
armada) o PC do B seguia o socialismo chinês (o maoísmo) e apoiava a guerrilha.
Pois bem, no começo dos anos 70, grandes empresas do sudeste e multinacionais
investiram em pecuária extensiva na região do Tocantins-Araguaia. Quando
chegaram lá, já havia pequenas roças na mão de camponeses posseiros (não tinham documentos legais da propriedade da terra,
apesar de trabalharem nelas havia muitos anos). Nem quiseram saber, passaram a
fazer grilagem das terras (tomar
ilegalmente). Quando o camponês não queria abandonar a terra, os capangas da
empresa iam lá, ateavam fogo no barraco, destruíam a plantação, espancavam os
moradores. Como você pode perceber, as lutas de classes entre os grileiros e os
posseiros eram muito fortes. O PC do B quis aproveitar esse potencial de
revolta e chegou na região para montar uma base de treinamento. Foram
descobertos pelo Exército, que deslocou para região milhares de soldados.
Contra uns 60 guerrilheiros. Numa região isolada do país, imprensa censurada,
as pessoas só sabiam alguma coisa através de boatos. Mas na região do Araguaia
até hoje as pessoas humildes se recordam do que aconteceu. Muitos militares
abusaram do poder e espancaram brutalmente a população para que revelasse os
esconderijos dos guerrilheiros. Os prisioneiros eram torturados de forma
bárbara e muitos encontraram a morte depois que o corpo virou uma massa de
pedaços de carne e sangue. Os guerrilheiros mortos foram enterrados em
cemitérios clandestinos e até hoje as famílias procuram seus corpos. Em 1974, a
guerrilha do Araguaia estava destruída.
O que dizer sobre essa loucura toda? Foram rapazes e moças, muitos ainda
adolescentes, que tiveram a coragem de abandonar o conforto do lar, a segurança
de uma vida encaminhada, a tranquilidade da vida de jovem de classe média, para
combater um regime opressor com armas na mão. Pessoas que dão a vida pelo ideal
de libertação de seu povo não podem ser consideradas criminosas. Mesmo que a
gente não concorde com os caminhos trilhados. Eles mataram? Certamente. Mas
nunca torturaram. Nem enterraram suas vítimas em cemitérios clandestinos. E se
o tivessem feito, nada disso justificaria a tortura e o assassinato executados
pelo governo. Além disso, seria mesmo inadmissível pegar em armas contra um
regime antidemocrático que esmagava o povo brasileiro? Que moral uma ditadura
tem para definir como deve ser combatida?
Fontes bibliográficas:
História do Brasil – Luiz Koshiba –
Ed. Atual
História Crítica do Brasil – Mário
Schmidt – Ed. Novos Tempos
História do Brasil – Boris Fausto –
Ed. Difel
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