A resposta de Hegel
Um
filósofo alemão do século XIX, Hegel, ofereceu uma solução para o problema do
inatismo e do empirismo posterior à de Kant.
Hegel
criticou o inatismo, o empirismo e o kantismo. A todos endereçou a mesma
crítica, qual seja, a de não haverem compreendido o que há de mais fundamental
e de mais essencial à razão: a razão é histórica.
De
fato, a Filosofia, preocupada em garantir a diferença entre a mera opinião (“eu
acho que”, “eu gosto de”, “eu não gosto de”) e a verdade (“eu penso que”, “eu
sei que”, “isto é assim porque”), considerou que as idéias só seriam racionais
e verdadeiras se fossem intemporais, perenes, eternas, as mesmas em todo tempo
e em todo lugar. Uma verdade que mudasse com o tempo ou com os lugares seria
mera opinião, seria enganosa, não seria verdade. A razão, sendo a fonte e a
condição da verdade, teria também que ser intemporal.
É
essa intemporalidade atribuída à verdade e à razão que Hegel criticou em toda a
Filosofia anterior.
Ao
afirmar que a razão é histórica, Hegel não está, de modo algum, dizendo que a
razão é algo relativo, que vale hoje e não vale amanhã, que serve aqui e não
serve ali, que cada época não alcança verdades universais. Não. O que Hegel
está dizendo é que a mudança, a transformação da razão e de seus conteúdos é
obra racional da própria razão. A razão não é uma vítima do tempo, que lhe
roubaria a verdade, a universalidade, a necessidade. A razão não está na
História; ela é a História. A razão não está no tempo; ela é
o tempo. Ela dá sentido ao tempo.
Hegel
também fez uma crítica aos inatistas e aos empiristas muito semelhante à que
Kant fizera. Ou seja, inatistas e empiristas acreditam que o conhecimento
racional vem das próprias coisas para nós, que o conhecimento depende
exclusivamente da ação das coisas sobre nós, e que a verdade é a
correspondência entre a coisa e a idéia da coisa.
Para
o empirista, a realidade “entra” em nós pela experiência. Para o inatista a
verdade “entra” em nós pelo poder de uma força espiritual que a coloca em nossa
alma, de modo que as idéias inatas não são produzidas pelo próprio sujeito do
conhecimento ou pela própria razão, mas são colocadas em nós por uma força
sábia e superior a nós (como Deus, por exemplo). Assim, o conhecimento parece
depender inteiramente de algo que vem de fora para dentro de nós. No caso dos
inatistas, depende da divindade; no caso dos empiristas, depende da experiência
sensível.
Inatistas
e empiristas se enganaram por excesso de objetivismo, isto é, por julgarem que
o conhecimento racional dependeria inteiramente dos objetos do conhecimento.
Mas
Kant também se enganou e pelo motivo oposto, isto é, por excesso de
subjetivismo, por acreditar que o conhecimento racional dependeria
exclusivamente do sujeito do conhecimento, das estruturas da sensibilidade e do
entendimento.
A
razão, diz Hegel, não é nem exclusivamente razão objetiva (a verdade está nos
objetos) nem exclusivamente subjetiva (a verdade está no sujeito), mas ela é
a unidade necessária do objetivo e do subjetivo. Ela é o conhecimento da
harmonia entre as coisas e as idéias, entre o mundo exterior e a consciência,
entre o objeto e o sujeito, entre a verdade objetiva e a verdade subjetiva. O
que é afinal a razão para Hegel?
A
razão é:
1. o conjunto das leis
do pensamento, isto é, os princípios, os procedimentos do raciocínio, as formas
e as estruturas necessárias para pensar, as categorias, as idéias – é razão
subjetiva;
2. a ordem, a
organização, o encadeamento e as relações das próprias coisas, isto é, a
realidade objetiva e racional – é razão objetiva;
3. a relação interna e
necessária entre as leis do pensamento e as leis do real. Ela é a unidade da
razão subjetiva e da razão objetiva.
Por
que a razão é histórica?
A
unidade ou harmonia entre o objetivo e o subjetivo, entre a realidade das
coisas e o sujeito do conhecimento não é um dado eterno, algo que existiu desde
todo o sempre, mas é uma conquista da razão e essa conquista a razão
realiza no tempo. A razão não tem como ponto de partida essa unidade, mas a tem
como ponto de chegada, como resultado do percurso histórico ou temporal
que ela própria realiza.
Qual
o melhor exemplo para compreender o que Hegel quer dizer? O melhor exemplo é o
que acabamos de ver nos capítulos 2 e 3 desta unidade.
Vimos
que os inatistas começaram combatendo a suposição de que opinião e verdade são
a mesma coisa. Para livrarem-se dessa suposição, o que fizeram eles? Disseram
que a opinião pertence ao campo da experiência sensorial, pessoal, psicológica,
instável e que as idéias da razão são inatas, universais, necessárias,
imutáveis.
Os
empiristas, no entanto, negaram que os inatistas tivessem acertado, negaram que
as idéias pudessem ser inatas e fizeram a razão depender da experiência
psicológica ou da percepção. Ao fazê-lo, revelaram os pontos fracos dos
inatistas, mas abriram o flanco para um problema que não podiam resolver, isto
é, a validade das ciências.
A
filosofia kantiana negou, então, que inatistas e empiristas estivessem certos.
Negou que pudéssemos conhecer a realidade em si das coisas, negou que a razão
possuísse conteúdos inatos, mostrando que os conteúdos dependem da experiência;
mas negou também que a experiência fosse a causa da razão, ou que esta fosse
adquirida, pois possui formas e estruturas inatas. Kant deu prioridade ao
sujeito do conhecimento, enquanto empiristas e inatistas davam prioridade ao
objeto do conhecimento.
Que
diz Hegel? Que esses conflitos filosóficos são a história da razão buscando
conhecer-se a si mesma e que, graças a tais conflitos, graças às contradições
entre as filosofias, a Filosofia pode chegar à descoberta da razão como síntese,
unidade ou harmonia das teses opostas ou contraditórias.
Em
cada momento de sua história, a razão produziu uma tese a respeito de si mesma
e, logo a seguir, uma tese contrária à primeira ou uma antítese. Cada tese e
cada antítese foram momentos necessários para a razão conhecer-se cada vez
mais. Cada tese e cada antítese foram verdadeiras, mas parciais. Sem elas, a
razão nunca teria chegado a conhecer-se a si mesma. Mas a razão não pode ficar
estacionada nessas contradições que ela própria criou, por uma necessidade dela
mesma: precisa ultrapassá-las numa síntese que una as teses contrárias,
mostrando onde está a verdade de cada uma delas e conservando essa verdade.
Essa é a razão histórica.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia.
São Paulo: Ed. Ática, 2000.
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