"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Razão e realidade


Os dois critérios vistos acima – a coerência interna de um pensamento ou de uma teoria e o potencial crítico-transformador dos conhecimentos – também nos ajudam a perceber quando a razão vira mito e deixa de ser razão.
Analisemos como exemplo as teorias que defendem o racismo e que são tidas como científicas ou racionais.
As teorias racistas se apresentam usando princípios, conceitos e procedimentos (ou métodos) racionais, científicos. Fazem pesquisas biológicas, genéticas, químicas, sociológicas; usam a indução e a dedução; definem conceitos, inferem conclusões dos dados obtidos por experiência e por cálculos estatísticos. Usando tais procedimentos, fazem demonstrações e por meio delas pretendem provar:  

1. que existem raças;
2. que as raças são biológica e geneticamente diferentes;
3. que há raças atrasadas e adiantadas, inferiores e superiores;
4. que as raças atrasadas e inferiores não são capazes, por exemplo, de desenvolvimento intelectual e estão naturalmente destinadas ao trabalho manual, pois sua razão é muito pequena e não conseguem compreender as idéias mais complexas e avançadas;
5. que as raças adiantadas e superiores estão naturalmente destinadas a dominar o planeta e que, se isso for necessário para seu bem, têm o direito de exterminar as raças atrasadas e inferiores;
6. que, para o bem das raças inferiores e das superiores, deve haver segregação racial (separação dos locais de moradia, de trabalho, de educação, de lazer, etc.), pois a não-segregação pode fazer as inferiores arrastarem as superiores para seu baixo nível, assim como pode fazer as superiores tentarem inutilmente melhorar o nível das inferiores.
Ora, a razão pode demonstrar que a “racionalidade” racista é irracional e que está a serviço da violência, da ignorância e da destruição.
Assim, a biologia e a genética demonstram que há diferenças na formação anatômico-fisiológica dos seres humanos em decorrência de diferenças internas do organismo e de diferenças ecológicas, isto é, do meio ambiente, e que tais diferenças não produzem “raças”. “Raça”, portanto, é uma palavra inventada para avaliar, julgar e manipular as diferenças biológicas e genéticas.
A sociologia, a antropologia e a história demonstram que as diferenças que a biologia e a genética apresentam não decorrem somente das diferenças nas condições ambientais, mas também são produzidas pelas diferentes maneiras pelas quais os grupos sociais definem as relações de trabalho, de parentesco, as formas de avaliação, de vestuário, de habitação, etc. Essas diferenças não formam “raças” e, portanto, “raça” é uma palavra inventada para avaliar, julgar e manipular tais diferenças.
A ciência política e econômica demonstra que, no interior de uma mesma sociedade, formam-se grupos e classes sociais que se apropriam das riquezas e do poder, colocam (pela força, pelo medo, pela superstição, pela mentira, pela ilusão) outros grupos e classes sociais sob sua dominação e justificam tal fato afirmando que tais grupos ou classes são inferiores e que possuem características físicas e mentais que os fazem ser uma “raça inferior”. “Raça”, portanto, não existe. É uma palavra inventada para legitimar a exploração e a dominação que um grupo social e político exerce sobre os outros grupos.
A psicologia demonstra que as capacidades mentais de todos os grupos e classes sociais de uma cultura são iguais, mas que se manifestam de modos diferenciados dependendo dos modos de vida, de trabalho, de acesso à escola e à educação formal, das crenças religiosas, de valores morais e artísticos diferentes, etc. Essas diferenças não formam “raças” e, portanto, “raça” é uma palavra inventada para transformar as diferenças em justificativas para discriminações e exclusões.
A Filosofia, recolhendo fatos, dados, resultados e demonstrações feitos pelas várias ciências, pode, então, concluir dizendo que:
1. a teoria do racismo é falsa, não é científica e é irracional;
2. a teoria “científica” do racismo é, na verdade, uma prática (e não uma teoria) econômica, social, política e cultural para justificar a violência contra seres humanos e, portanto, é inaceitável para as ciências, para a Filosofia e para a razão. Uma “razão” racista não é razão, mas ignorância, preconceito, violência e irrazão.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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