Razão e realidade
Os dois critérios vistos acima – a coerência interna de um
pensamento ou de uma teoria e o potencial crítico-transformador dos
conhecimentos – também nos ajudam a perceber quando a razão vira mito e deixa
de ser razão.
Analisemos como exemplo as teorias que defendem o racismo e
que são tidas como científicas ou racionais.
As teorias racistas se apresentam usando princípios,
conceitos e procedimentos (ou métodos) racionais, científicos. Fazem pesquisas
biológicas, genéticas, químicas, sociológicas; usam a indução e a dedução;
definem conceitos, inferem conclusões dos dados obtidos por experiência e por
cálculos estatísticos. Usando tais procedimentos, fazem demonstrações e por
meio delas pretendem provar:
1. que existem raças;
2. que as raças são biológica e geneticamente diferentes;
3. que há raças atrasadas e adiantadas, inferiores e
superiores;
4. que as raças atrasadas e inferiores não são capazes, por
exemplo, de desenvolvimento intelectual e estão naturalmente destinadas ao
trabalho manual, pois sua razão é muito pequena e não conseguem compreender as
idéias mais complexas e avançadas;
5. que as raças adiantadas e superiores estão naturalmente
destinadas a dominar o planeta e que, se isso for necessário para seu bem, têm
o direito de exterminar as raças atrasadas e inferiores;
6. que, para o bem das raças inferiores e das superiores,
deve haver segregação racial (separação dos locais de moradia, de trabalho, de
educação, de lazer, etc.), pois a não-segregação pode fazer as inferiores
arrastarem as superiores para seu baixo nível, assim como pode fazer as
superiores tentarem inutilmente melhorar o nível das inferiores.
Ora, a razão pode demonstrar que a “racionalidade” racista
é irracional e que está a serviço da violência, da ignorância e da destruição.
Assim, a biologia e a genética demonstram que há diferenças
na formação anatômico-fisiológica dos seres humanos em decorrência de
diferenças internas do organismo e de diferenças ecológicas, isto é, do meio
ambiente, e que tais diferenças não produzem “raças”. “Raça”, portanto, é uma
palavra inventada para avaliar, julgar e manipular as diferenças biológicas e
genéticas.
A sociologia, a antropologia e a história demonstram que as
diferenças que a biologia e a genética apresentam não decorrem somente das
diferenças nas condições ambientais, mas também são produzidas pelas diferentes
maneiras pelas quais os grupos sociais definem as relações de trabalho, de
parentesco, as formas de avaliação, de vestuário, de habitação, etc. Essas
diferenças não formam “raças” e, portanto, “raça” é uma palavra inventada para
avaliar, julgar e manipular tais diferenças.
A ciência política e econômica demonstra que, no interior
de uma mesma sociedade, formam-se grupos e classes sociais que se apropriam das
riquezas e do poder, colocam (pela força, pelo medo, pela superstição, pela
mentira, pela ilusão) outros grupos e classes sociais sob sua dominação e
justificam tal fato afirmando que tais grupos ou classes são inferiores e que
possuem características físicas e mentais que os fazem ser uma “raça inferior”.
“Raça”, portanto, não existe. É uma palavra inventada para legitimar a
exploração e a dominação que um grupo social e político exerce sobre os outros
grupos.
A psicologia demonstra que as capacidades mentais de todos
os grupos e classes sociais de uma cultura são iguais, mas que se manifestam de
modos diferenciados dependendo dos modos de vida, de trabalho, de acesso à
escola e à educação formal, das crenças religiosas, de valores morais e
artísticos diferentes, etc. Essas diferenças não formam “raças” e, portanto,
“raça” é uma palavra inventada para transformar as diferenças em justificativas
para discriminações e exclusões.
A Filosofia, recolhendo fatos, dados, resultados e
demonstrações feitos pelas várias ciências, pode, então, concluir dizendo que:
1. a teoria do racismo é falsa, não é científica e é
irracional;
2. a teoria “científica” do racismo é, na verdade, uma
prática (e não uma teoria) econômica, social, política e cultural para
justificar a violência contra seres humanos e, portanto, é inaceitável para as
ciências, para a Filosofia e para a razão. Uma “razão” racista não é razão, mas
ignorância, preconceito, violência e irrazão.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite
à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.
0 Response to "Razão e realidade"
Postar um comentário