"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Aprendendo com as dificuldades da razão


Vimos também que:
1. mesmo quando os filósofos, para resolver os impasses do inatismo, do empirismo e do kantismo, afirmam que a razão é histórica, nem por isso entendem a mesma coisa;
2. dizer que a razão é histórica pode significar: a razão evolui, progride continuamente no tempo, avança e se torna cada vez melhor; mas também pode significar: a razão muda radicalmente em cada época, sua história é feita de rupturas e descontinuidades e não há como, nem por que comparar as diferentes formas da racionalidade, cada qual tendo sua necessidade própria e seu valor próprio para o momento em que foi proposta;  

3. dizer que a história da razão é descontínua poderia levar a pensar que, afinal, a palavra razão não indica nada de muito preciso, nada de muito claro e rigoroso e que, talvez, seja um mito que a cultura ocidental inventou para si mesma. Mas pode também significar uma outra coisa, muito mais importante: que a razão não é a estrutura universal do espírito humano e sim um meio precioso de que dispomos para criar, julgar e avaliar conhecimentos, para dar sentido às coisas, às situações e aos acontecimentos e para transformar nossa existência individual e coletiva.
Ora, o que fizemos até aqui foi um percurso no qual a razão não cessa de indagar a si mesma o que ela é, o que ela pode e vale, por que ela existe. As crises da razão são enfrentadas por ela, na medida em que são criadas por ela mesma em sua relação com a produção dos conhecimentos e com as condições históricas nas quais ela se realiza.
É verdade que tomar a razão pelo prisma de suas dificuldades e de seus impasses pode levar ao risco de cairmos na atitude cética, isto é, na posição dos que não acreditam que a razão seja capaz de conhecimentos verdadeiros. Isso, no entanto, só aconteceria se imaginássemos que a razão deveria ser imutável, intemporal e a-histórica e, portanto, algo que estaria em nós, mas que seria completamente diferente de nós, já que somos mutáveis, temporais e históricos. O cético é, afinal, aquele que, no fundo, deseja uma razão absoluta (impossível) e por isso despreza a razão humana tal como ela existe, pois da forma como ela existe, ele, o cético, não pode conhecê-la.
Podemos dizer ainda que tomar a razão pelo prisma de suas dificuldades e de seus impasses, de suas conquistas e perdas é a melhor vacina que a Filosofia possui contra uma doença intelectual muito perigosa chamada dogmatismo.
Dogmatismo vem da palavra grega dogma, que significa: uma opinião estabelecida por decreto e ensinada como uma doutrina, sem contestação. Por ser uma opinião decretada ou uma doutrina inquestionada, um dogma é tomado como uma verdade que não pode ser contestada nem criticada, como acontece, por exemplo, na nossa vida cotidiana, quando, diante de uma pergunta ou de uma dúvida que apresentamos, nos respondem: “É assim porque é assim e porque tem que ser assim”. O dogmatismo é uma atitude autoritária e submissa. Autoritária, porque não admite dúvida, contestação e crítica. Submissa, porque se curva às opiniões estabelecidas.
As crises, as dificuldades e os impasses da razão mostram, assim, o oposto do dogmatismo. Indicam atitude reflexiva e crítica própria da racionalidade, destacando a importância fundamental da liberdade de pensamento para a própria razão e para a Filosofia.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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