Aprendendo com as dificuldades da razão
Vimos também que:
1. mesmo quando os filósofos, para resolver os
impasses do inatismo, do empirismo e do kantismo, afirmam que a razão é
histórica, nem por isso entendem a mesma coisa;
2. dizer que a razão é histórica pode significar: a
razão evolui, progride continuamente no tempo, avança e se torna cada vez
melhor; mas também pode significar: a razão muda radicalmente em cada época,
sua história é feita de rupturas e descontinuidades e não há como, nem por que
comparar as diferentes formas da racionalidade, cada qual tendo sua necessidade
própria e seu valor próprio para o momento em que foi proposta;
3. dizer que a história da razão é descontínua
poderia levar a pensar que, afinal, a palavra razão não indica nada de
muito preciso, nada de muito claro e rigoroso e que, talvez, seja um mito que a
cultura ocidental inventou para si mesma. Mas pode também significar uma outra
coisa, muito mais importante: que a razão não é a estrutura universal do
espírito humano e sim um meio precioso de que dispomos para criar, julgar e
avaliar conhecimentos, para dar sentido às coisas, às situações e aos
acontecimentos e para transformar nossa existência individual e coletiva.
Ora, o que fizemos até aqui foi um percurso no qual a razão
não cessa de indagar a si mesma o que ela é, o que ela pode e vale, por que ela
existe. As crises da razão são enfrentadas por ela, na medida em que são
criadas por ela mesma em sua relação com a produção dos conhecimentos e com as
condições históricas nas quais ela se realiza.
É verdade que tomar a razão pelo prisma de suas
dificuldades e de seus impasses pode levar ao risco de cairmos na atitude
cética, isto é, na posição dos que não acreditam que a razão seja capaz de
conhecimentos verdadeiros. Isso, no entanto, só aconteceria se imaginássemos
que a razão deveria ser imutável, intemporal e a-histórica e, portanto, algo
que estaria em nós, mas que seria completamente diferente de nós, já que somos
mutáveis, temporais e históricos. O cético é, afinal, aquele que, no fundo,
deseja uma razão absoluta (impossível) e por isso despreza a razão humana tal
como ela existe, pois da forma como ela existe, ele, o cético, não pode conhecê-la.
Podemos dizer ainda que tomar a razão pelo prisma de suas
dificuldades e de seus impasses, de suas conquistas e perdas é a melhor vacina
que a Filosofia possui contra uma doença intelectual muito perigosa chamada dogmatismo.
Dogmatismo vem da palavra grega dogma, que
significa: uma opinião estabelecida por decreto e ensinada como uma doutrina,
sem contestação. Por ser uma opinião decretada ou uma doutrina inquestionada,
um dogma é tomado como uma verdade que não pode ser contestada nem criticada,
como acontece, por exemplo, na nossa vida cotidiana, quando, diante de uma
pergunta ou de uma dúvida que apresentamos, nos respondem: “É assim porque é
assim e porque tem que ser assim”. O dogmatismo é uma atitude autoritária e
submissa. Autoritária, porque não admite dúvida, contestação e crítica.
Submissa, porque se curva às opiniões estabelecidas.
As crises, as dificuldades e os impasses da razão mostram,
assim, o oposto do dogmatismo. Indicam atitude reflexiva e crítica própria da
racionalidade, destacando a importância fundamental da liberdade de pensamento
para a própria razão e para a Filosofia.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite
à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.
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