Costa e Silva (1967 – 1969)
Os militares tinham indicado e o Congresso balançou a cabeça: o novo
general-presidente era Arthur da Costa e
Silva. Só a Arena tinha votado na eleição indireta. Em vez de levantar o
braço, batia continência. O MDB, em protesto (era minoria), havia se retirado
do plenário. Com mãos ao alto.
Costa e Silva era tido como um homem de hábitos simples. Em vez da
companhia dos livros, como gostava o pedante Castello Branco, preferia acompanhar
as corridas de cavalos. Pessoalmente, diziam que era “gente boa”. Mas se Costa
e Silva queria tranquilidade, tinha escolhido mal o emprego. Melhor seria dar
palpites no jockey.
Depois do impacto de 64, com aquela onda de prisões e fechamentos, as oposições
ao regime voltaram a se articular. Até mesmo Lacerda tinha virado oposição. É
que ele tivera esperança de se tornar presidente, mas aqueles a quem bajulara
lhe viraram as costas. Magoado, procurou unir Juscelino e Jango, exilados, numa
Frente Ampla. Pouco resultado daria. Longe do país, tinham pouca influência.
Apesar do PAEG de Castello diminuir a inflação e retomar o crescimento,
a situação da classe operária vinha piorando. Em 1965, os operários paulistas
ganhavam, em média, apenas 89% do que recebiam em 1960, em 1969, apenas 68%.
Estava ficando feia a coisa.
Os anos 60 formaram a grande década revolucionária. Os anos da
minissaia, dos homens de cabelo comprido, da pílula anticoncepcional; da guerra
do Vietnã, dos hippies, do feminismo; da Revolução Cultural na China, da
Primavera de Praga, dos Beatles, dos Rolling Stones, de Jimi Hendrix e Janis
Joplin, do LSD, do psicodelismo, das viagens à Lua; de Kennedy, Krutchev e Mao
Tsetung; do cinema de Godard, Pasolini e Antonioni; das idéias e dos livros de
Sartre, Marcuse, Althusser, Hermann Hesse, Erich Fromm e Wilhelm Reich; dos
transplantes de coração, dos computadores e do amor livre, de Bob Dylan, Jim
Morrison e Martin Luther King; de "Paz e Amor", Woodstock e Che
Guevara.
Especialmente, 1968. Trabalhadores
e estudantes se levantaram no mundo inteiro. Em Paris, cidadela do tranquilo
capitalismo desenvolvido, os operários fizeram greve geral e os estudantes
jogavam pedras na polícia. Nos muros da capital francesa, os grafites
anunciavam o novo mundo: “É proibido proibir”, “A imaginação no poder!”, “Amor
e revolução andam juntos”. Nos EUA, atacava-se o racismo. Tempos de Martin
Luther King e de Malcolm X, grandes líderes negros. Os estudantes
norte-americanos também sonhavam com socialismo e milhares deles protestariam
contra o absurdo de a máquina de guerra ianque agredir o povo do Vietnã. Na
América Latina, sonhava-se com guerrilhas libertadoras. Na Tcheco-Eslováquia,
aconteceu a Primavera de Praga: os comunistas, liderados por Dubcek, tentaram
construir o socialismo humanista. Na
China Popular, o camarada Mao Tse-Tung estimulava a Revolução Cultural. A Cuba
revolucionária de Fidel Castro e Che Guevara mostrava o caminho para os jovens
latino-americanos: guerrilha, revolução popular, socialismo “Hasta la victoria compañeros!” (Até a
vitória companheiros!) No Brasil, a luta era contra uma ditadura militar e um
capitalismo troglodita. Desafiando abertamente o regime, os operários fizeram
greve em Contagem (Minas Gerais). Pouco depois, pararam os metalúrgicos de
Osasco (São Paulo).
O governo militar, através da Lei Suplicy, quis impedir que os
estudantes se organizassem. O maldito acordo MEC-Usaid previa a colaboração dos
técnicos americanos na reformulação do ensino brasileiro. E o que os ianques
propunham? Acabar com as discussões políticas na universidade: estudante
deveria apenas ser mão-de-obra qualificada para atender as multinacionais aqui
instaladas. Além disso, o governo queria que o ensino superior fosse pago. Ou
seja, faculdade só para minoria de classe média alta para cima.
Mas a UNE estava lá para lutar contra. Época gloriosa do movimento
estudantil. Coragem, sonhos libertários, utopia na alma. A juventude queria o
poder no mundo! Os estudantes iam para a rua contra um governo que esculhambava
a universidade pública, contra um regime militar. Apesar de proibidas, suas
passeatas nas ruas atraíram cada vez mais participantes, de operários e boys a
donas de casa e profissionais liberais. A grande imprensa chamava-os de
“infantis”, “toxicômanos”, “desequilibrados”. A polícia atacava. Cassetetes,
gás lacrimogêneo, caminhões brucutu. Eles respondiam com pedras, bolas de gude
(contra a cavalaria da PM), coquetéis molotov e idealismo. Os principais
líderes estudantis estavam no Rio de Janeiro: Vladimir Palmeira e Luís
Travassos.
Voltando no tempo...
Imagine que você, com sua idade atual, acaba de voltar no tempo. Estamos
em 1968, no Rio de Janeiro. Em que é que você está pensando? O que é que você
faz no dia-a-dia?
Imagine que você é de classe média e está se preparando para o
vestibular. Assustador. A faculdade tem vagas reduzidas. Aliás, essa é uma das
bandeiras do movimento estudantil: alargar o funil que desemboca na
universidade. Que curso você vai seguir? A maioria quer ser engenheiro, médico,
advogado. Mas tem gente que quer conhecer o Brasil para transformá-lo: vão
estudar sociologia, história, filosofia e até economia. Um amigo seu diz,
brincando, que tem um professor de sociologia da USP que um dia ainda vai ser
presidente da República.
Na faculdade, quem não é de esquerda está por fora. Claro que há uma
povão de gente alienada, que nem dá bola para o que acontece no país. Mas você
e seus amigos são conscientizados. O problema é que existe uma floresta de
partidos e grupelhos de esquerda: PC do B, AP, Polop, Dissidência na Guanabara
e tantos outros (sigla era um troço importante naquela época). Só não vale o
PCB, que não é bem visto pela garotada, que o chama de “Partidão”. Parece com
um velho sábio que não dá mais no couro. Na verdade, o fato de o PCB não
aceitar a luta armada contra o regime tira o charme dele. Afinal, todos temos
pôster de Che Guevara e Ho Chi Minh na parede de casa e gostamos de nos
imaginar na selva entre os camponeses, com idéias na cabeça e um fuzil na mão.
As pessoas lêem o suficiente para não se sentirem alienadas. Estamos em
1968 e alguns autores são obrigatórios: Leo Huberman, Engels, Lênin, Nélson
Werneck Sodré, Caio Prado Jr, Moniz Bandeira e o famoso manual marxista de
Politzer. Quem não leu, ouviu falar. O que é suficiente para participar de um
debate, que é o que mais interessa. Para os mais metidos a espertos, cabe citar
Marcuse, Althusser, Gramsci e Erich Fromm.
No corredor da faculdade, vocês discutem política. Baixinho, mas
escancarado (até 1968 ainda dava para fazer isso). De um lado, os que acham que
primeiro devem organizar os trabalhadores para depois partir para luta armada,
do outro, os que acham que a luta armada organizará os trabalhadores. Isso
mesmo que você está lendo: na cabeça do pessoal, a revolução está ali na
esquina. É só pegar.
Hoje tem passeata convocada pela UNE. Na faculdade, pintamos as faixas
com os dizeres manjados como “Abaixo a ditadura” e o provocativo “Povo armado
derruba a ditadura”. Vamos para a passeata? É um problema. Sua mãe tem medo, seu
pai (na época, é claro, lembre-se de que estamos em 68) apoiou o golpe. Melhor
ir escondido. Se você é mulher pior, porque tudo é proibido: frequentar boate,
beber, chegar em casa tarde da noite, viajar com o namorado e, óbvio, ir à
passeata. Portanto, mais uma que vai escondida alegando que ia “ficar na
biblioteca estudando”.
Lá está você com o pessoal, no centro da cidade. Gritando palavras de
ordem contra o regime. Dos edifícios, papel picado e aplausos. O apoio dos
escritórios te enche de autoconfiança e você realmente se sente fazendo algo de
importante na história do Brasil. Na cabeça, o grande hino da época, Pra não dizer que não falei das flores,
de Geraldo Vandré: “Vem, vamos embora / que esperar não é fazer / quem sabe faz
a hora / não espera acontecer”...
De repente, chegam os homens. Marcham juntos, compactos, uma massa sem
indivíduos. É a polícia. Escudo, cassetete de madeira, capacete protegendo o
miolo mole. Corre que eles estão vindo! Dá tempo de pixar o muro com o spray “Abaixo a repressão!” Sai fora. O
cheiro de gás lacrimogêneo incomoda. Hora de botar a pastilha de Cebion debaixo
da língua, lenço molhado no nariz. O pau cantou! Contra a violência cega, a
consciência estudantil, contra a brutalidade do Estado, pedradas, xingamentos e
alma libertária transbordando.
Não há graça nenhuma. Tem gente que sai com o rosto ensopado de sangue,
hematomas pelo corpo, dentes quebrados. Muitos são presos e empurrados para o
carro coração de mãe. Haja claustrofobia. Seguirão para a delegacia, para serem
fichados, humilhados e levar uns cascudos. Só no final do ano é que a polícia
começa a atirar para matar.
Se você não apanhou muito nem foi preso, dá para chegar num barzinho no
começo da noite, Depois de uns chopes, ou cuba-libre (rum com Coca-Cola), todo mundo
ficava animado para contar pela décima vez suas proezas, sempre um pouquinho
exageradas, é claro. Você pode estar interessado(a) numa pessoa, num cara ou
numa menina. (Mas não há duplo sentido: o homossexualismo não era tolerado nem
pela esquerda. Ser bicha era quase sinônimo de ser contra-revolucionário.
Muitos guerrilheiros machos se remoeriam de culpa pelos anônimos desejos
inconfessáveis. Só no final dos anos 70 as mentalidades começaram a mudar.)
Pois bem, se você estivesse a fim de alguém, logo trataria de falar alto para
aparecer. Essas coisas não mudaram demais desde então, não é mesmo? Um bom
caminho era se mostrar intrépido no combate aos policiais e, ao mesmo tempo,
estar por dentro das últimas novidades culturais.
No cinema, contavam muito os filmes intelectualizados. O esquema de
Hollywood, bajulando atores e espetáculos, não estava com nada. Pelo menos nos
papos-cabeça. O negócio era filme de diretor-autor. Antonioni (Blow-up, 1967, e
, Zabriesky Point, 1969), Jean-Luc Godard (A Chinesa, 1967), Pasolini, Bergman,
Visconti, Fellini e o nosso Glauber Rocha ( Terra em Transe, 1967, Dragão da
Maldade contra o Santo Guerreiro, prêmio de Cannes 1969 como melhor diretor), É
claro que também se via muita coisa comercial... Aí as estrelas eram Marlon
Brando, Richard Burton, Marilyn Monroe, Sophia Loren, Jane Fonda, Paul Newman,
Marcelo Mastroiani, Alain Delon e, claro, Jane Fonda, que depois de posar nua
virou militante contra a Guerra do Vietnã.
Em literatura, a turma gostava de coisas engajadas como obras de Brecht,
Maiakovski, Pablo Neruda, Gorki, Sartre. Mas também valia Franz Kafka, o judeu
tcheco que escrevia em alemão sobre o absurdo da sociedade burocrática. O
americano Henry Miller descrevia o sexo com uma crueza tão violenta que achavam
que era arte. Quem já gostava de misticismo lia Hermann Hesse.
Claro que ninguém era um chato de ir a um bar e ficar conversando sobre
coisas intelectuais e políticas o tempo inteiro. Isso só existe em série da
Globo. As pessoas também dançavam, iam a festas, bebiam além da conta,
namoravam, iam às compras, estudavam para as provas.
Toda menina moderninha falava de amor livre. Anticoncepcional era a
pílula da moda. Entretanto, mesmo entre o pessoal de esquerda, havia muito
conservadorismo. A maioria das moças casaria virgem mesmo e, no máximo,
permitiriam algumas carícias avançadas. Mulher que transasse com alguns caras
era vista como “galinha”, e certamente ninguém iria querer algo mais “sério”
com elas. Como já ensinava Maquiavel no Renascimento italiano, os preconceitos
têm mais raízes do que os princípios.
Fontes
bibliográficas:
História do Brasil – Luiz Koshiba –
Ed. Atual
História Crítica do Brasil – Mário
Schmidt – Ed. Novos Tempos
História do Brasil – Boris Fausto –
Ed. Difel
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