"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Razão e descontinuidade temporal


Nos anos 60, desenvolveu-se, sobretudo na França, uma corrente científica (iniciado na linguística e na antropologia social) chamada estruturalismo. Para os estruturalistas, o mais importante não é a mudança ou a transformação de uma realidade (de uma língua, de uma sociedade indígena, de uma teoria científica), mas a estrutura ou a forma que ela tem no presente.  

A estrutura passada e a estrutura futura são consideradas estruturas diferentes entre si e diferentes da estrutura presente, sem que haja interesse em acompanhar temporalmente a passagem de uma estrutura para outra. Assim, o estruturalismo científico desconsidera a posição filosófica de tipo hegeliano, tendo maior afinidade com a kantiana. O estruturalismo teve uma grande influência sobre o pensamento filosófico e isso se refletiu na discussão sobre a razão.
Se observarmos bem, notaremos que a solução hegeliana revela uma concepção cumulativa e otimista da razão:
Cumulativa: Hegel considera que a razão, na batalha interna entre teses e antíteses, vai sendo enriquecida, vai acumulando conhecimentos cada vez maiores sobre si mesma, tanto como conhecimento da racionalidade do real (razão objetiva), quanto como conhecimento da capacidade racional para o conhecimento (razão subjetiva).
Otimista: para Hegel, a razão possui força para não se destruir a si mesma em suas contradições internas; ao contrário, supera cada uma delas e chega a uma síntese harmoniosa de todos os momentos que constituíram a sua história.
Influenciados pelo estruturalismo, vários filósofos franceses, como Michel Foucault, Jacques Derrida e Giles Delleuze, estudando a história da Filosofia, das ciências, da sociedade, das artes e das técnicas, disseram que, sem dúvida, a razão é histórica – isto é, muda temporalmente – mas essa história não é cumulativa, evolutiva, progressiva e contínua. Pelo contrário, é descontínua, se realiza por saltos e cada estrutura nova da razão possui um sentido próprio, válido apenas para ela.
Dizem eles que uma teoria (filosófica ou científica) ou uma prática (ética, política, artística) são novas justamente quando rompem as concepções anteriores e as substituem por outras completamente diferentes, não sendo possível falar numa continuidade progressiva entre elas, pois são tão diferentes que não há como nem por que compará-las e julgar uma delas mais atrasada e a outra mais adiantada.
Assim, por exemplo, a teoria da relatividade, elaborada por Einstein, não é continuação evoluída e melhorada da física clássica, formulada por Galileu e Newton, mas é uma outra física, com conceitos, princípios e procedimentos completamente novos e diferentes. Temos duas físicas diferentes, cada qual com seu sentido e valor próprio.
Não se pode falar num processo, numa evolução ou num avanço da razão a cada nova teoria, pois a novidade significa justamente que se trata de algo tão novo, tão diferente e tão outro que será absurdo falar em continuidade e avanço. Não há como dizer que as idéias e as teorias passadas são falsas, erradas ou atrasadas: elas simplesmente são diferentes das outras porque se baseiam em princípios, interpretações e conceitos novos.
Em cada época de sua história, a razão cria modelos ou paradigmas explicativos para os fenômenos ou para os objetos do conhecimento, não havendo continuidade nem pontos comuns entre eles que permitam compará-los. Agora, em lugar de um processo linear e contínuo da razão, fala-se na invenção de formas diferentes de racionalidade, de acordo com critérios que a própria razão cria para si mesma. A razão grega é diferente da medieval que, por sua vez, é diferente da renascentista e da moderna. A razão moderna e a iluminista também são diferentes, assim como a razão hegeliana é diferente da contemporânea.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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