"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Por que ainda falamos em razão?


Diante das concepções descontinuístas da razão, podemos fazer duas perguntas:
1ª. Se, em cada época, por motivos históricos e teóricos determinados, a razão muda inteiramente, o que queremos dizer quando continuamos empregando a palavra razão?
2ª. Se, em cada ciência, cada filosofia, cada teoria, cada expressão do pensamento, nada há em comum com as anteriores e as posteriores, por que dizemos que algumas são racionais e outras não o são? A razão não seria, afinal, um mito que nossa cultura inventou para si mesma?
Podemos responder à primeira pergunta dizendo que continuamos a falar em razão, apesar de haver muitas e diferentes “razões”, porque mantemos uma idéia que é essencial à noção ocidental de razão. Que idéia é essa? A de que a realidade, o mundo natural e cultural, os seres humanos, sua ações e obras têm sentido e que esse sentido pode ser conhecido. É o ideal do conhecimento objetivo que é conservado quando continuamos a falar em razão.
Com relação à segunda pergunta, podemos dizer que, em cada época, os membros da sociedade e da cultura ocidentais julgam a validade da própria razão como capaz ou incapaz de realizar o ideal do conhecimento. Esse julgamento pode ser realizado de duas maneiras.
A primeira maneira ou o primeiro critério de avaliação da capacidade racional é o da coerência interna de um pensamento ou de uma teoria. Ou seja, quando um pensamento ou uma teoria se propõem a oferecer um conhecimento, simultaneamente também oferecem os princípios, os conceitos e os procedimentos que sustentam a explicação apresentada. Quando não há compatibilidade entre a explicação e os princípios, os conceitos e os procedimentos oferecidos, dizemos que não há coerência e que o pensamento ou a teoria não são racionais. A razão é, assim, o critério de que dispomos para a avaliação, o instrumento para julgar a validade de um pensamento ou de uma teoria, julgando sua coerência ou incoerência consigo mesmos.
A segunda maneira é diferente da anterior. Agora, pergunta-se se um pensamento ou uma teoria contribuem ou não para que os seres humanos conheçam e compreendam as circunstâncias em que vivem, contribuem ou não para alterar situações que os seres humanos julgam inaceitáveis ou intoleráveis, contribuem ou não para melhorar as condições em que os seres humanos vivem. Assim, a razão, além de ser o critério para avaliar os conhecimentos, é também um instrumento crítico para compreendermos as circunstâncias em que vivemos, para mudá-las ou melhorá-las. A razão tem um potencial ativo ou transformador e por isso continuamos a falar nela e a desejá-la.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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