"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Os filósofos modernos e a teoria do conhecimento


Quando se diz que a teoria do conhecimento tornou-se uma disciplina específica da Filosofia somente com os filósofos modernos (a partir do século XVII) não se pretende dizer que antes deles o problema do conhecimento não havia ocupado outros filósofos, e sim que, para os modernos, a questão do conhecimento foi considerada anterior à da ontologia e pré-condição ou pré-requisito para a Filosofia e as ciências.
Por que essa mudança de perspectiva dos gregos para os modernos? Porque entre eles instala-se o cristianismo, trazendo problemas que os antigos filósofos desconheciam.  

A perspectiva cristã introduziu algumas distinções que romperam com a ideia grega de uma participação direta e harmoniosa entre o nosso intelecto e a verdade, nosso ser e o mundo. O cristianismo fez distinção entre fé e razão, verdades reveladas e verdades racionais, matéria e espírito, corpo e alma; afirmou que o erro e a ilusão são parte da natureza humana em decorrência do caráter pervertido de nossa vontade, após o pecado original.
Em conseqüência, a Filosofia precisou enfrentar três problemas novos:
1. Como, sendo seres decaídos e pervertidos, podemos conhecer a verdade?
2. Sendo nossa natureza dupla (matéria e espírito), como nossa inteligência pode conhecer o que é diferente dela? Isto é, como seres corporais podem conhecer o incorporal (Deus) e como seres dotados de alma incorpórea podem conhecer o corpóreo (mundo)?
3. Os filósofos antigos consideravam que éramos entes participantes de todas as formas de realidade: por nosso corpo, participamos da Natureza; por nossa alma, participamos da Inteligência divina. O cristianismo, ao introduzir a noção de pecado original, introduziu a separação radical entre os humanos (pervertidos e finitos) e a divindade (perfeita e infinita). Com isso, fez surgir a pergunta: como o finito (humano) pode conhecer a verdade (infinita e divina)?
Eis porque, durante toda a Idade Média, a fé tornou-se central para a Filosofia, pois era através dela que essas perguntas eram respondidas. Auxiliada pela graça divina, a fé iluminava nosso intelecto e guiava nossa vontade, permitindo à nossa razão o conhecimento do que está ao seu alcance, ao mesmo tempo em que nossa alma recebia os mistérios da revelação. A fé nos fazia saber (mesmo que não pudéssemos compreender como isso era possível) que, pela vontade soberana de Deus, era concedido à nossa alma imaterial conhecer as coisas materiais.
Os filósofos modernos, porém, não aceitaram essas respostas e por esse motivo a questão do conhecimento tornou-se central para eles.
Os gregos se surpreendiam que pudesse haver erro, ilusão e mentira. Como a verdade – aletheia – era concebida como presença e manifestação do verdadeiro aos nossos sentidos ou ao nosso intelecto, isto é, como presença do Ser à nossa experiência sensível ou ao puro pensamento, a pergunta filosófica só podia ser: Como é possível o erro ou a ilusão? Ou seja, como é possível ver o que não é, dizer o que não é, pensar o que não é?
Para os modernos, a situação é exatamente contrária. Se a verdade depende da revelação e da vontade divinas, e se nosso intelecto foi pervertido pela nossa vontade pecadora, como podemos conhecer a verdade? Se a verdade depender da fé e se depender da fraqueza da nossa vontade, como nossa razão poderá conhecê-la?
O cristianismo, particularmente com santo Agostinho, trouxe a ideia de que cada ser humano é uma pessoa. Essa ideia vem do Direito Romano, que define a pessoa como um sujeito de direitos e de deveres. Se somos pessoas, somos responsáveis por nossos atos e pensamentos. Nossa pessoa é nossa consciência, que é nossa alma dotada de vontade, imaginação, memória e inteligência.
A vontade é livre e, aprisionada num corpo passional e fraco, pode mergulhar nossa alma na ilusão e no erro. Estar no erro ou na verdade dependerá, portanto, de nós mesmos e por isso precisamos saber se podemos ou não conhecer a verdade e em que condições tal conhecimento é possível. Os primeiros filósofos cristãos e os medievais afirmavam que podemos conhecer a verdade, desde que a razão não contradiga a fé e se submeta a ela no tocante às verdades últimas e principais.
A primeira tarefa que os modernos se deram foi a de separar fé de razão, considerando cada uma delas destinada a conhecimentos diferentes e sem qualquer relação entre si. A segunda tarefa foi a de explicar como a alma-consciência, embora diferente dos corpos, pode conhecê-los. Consideraram que a alma pode conhecer os corpos porque os representa intelectualmente por meio das ideias e estas são imateriais como a própria alma. A terceira tarefa foi a de explicar como a razão e o pensamento podem tornar-se mais fortes do que a vontade e controlá-la para que evite o erro.
O problema do conhecimento torna-se, portanto, crucial e a Filosofia precisa começar pelo exame da capacidade humana de conhecer, pelo entendimento ou sujeito do conhecimento. A teoria do conhecimento volta-se para a relação entre o pensamento e as coisas, a consciência (interior) e a realidade (exterior), o entendimento e a realidade; em suma, o sujeito e o objeto do conhecimento.
Os dois filósofos que iniciam o exame da capacidade humana para o erro e a verdade são o inglês Francis Bacon e o francês René Descartes. O filósofo que propõe, pela primeira vez, uma teoria do conhecimento propriamente dita é o inglês John Locke. A partir do século XVII, portanto, a teoria do conhecimento torna-se uma disciplina central da Filosofia.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

0 Response to "Os filósofos modernos e a teoria do conhecimento"