Os filósofos modernos e a teoria do conhecimento
Quando se diz que a teoria do
conhecimento tornou-se uma disciplina específica da Filosofia somente com os
filósofos modernos (a partir do século XVII) não se pretende dizer que antes
deles o problema do conhecimento não havia ocupado outros filósofos, e sim que,
para os modernos, a questão do conhecimento foi considerada anterior à da
ontologia e pré-condição ou pré-requisito para a Filosofia e as ciências.
Por que essa mudança de
perspectiva dos gregos para os modernos? Porque entre eles instala-se o
cristianismo, trazendo problemas que os antigos filósofos desconheciam.
A perspectiva cristã introduziu
algumas distinções que romperam com a ideia grega de uma participação direta e
harmoniosa entre o nosso intelecto e a verdade, nosso ser e o mundo. O
cristianismo fez distinção entre fé e razão, verdades reveladas e verdades
racionais, matéria e espírito, corpo e alma; afirmou que o erro e a ilusão são
parte da natureza humana em decorrência do caráter pervertido de nossa vontade,
após o pecado original.
Em conseqüência, a Filosofia
precisou enfrentar três problemas novos:
1. Como, sendo seres decaídos e
pervertidos, podemos conhecer a verdade?
2. Sendo nossa natureza dupla
(matéria e espírito), como nossa inteligência pode conhecer o que é diferente
dela? Isto é, como seres corporais podem conhecer o incorporal (Deus) e como
seres dotados de alma incorpórea podem conhecer o corpóreo (mundo)?
3. Os filósofos antigos
consideravam que éramos entes participantes de todas as formas de realidade:
por nosso corpo, participamos da Natureza; por nossa alma, participamos da
Inteligência divina. O cristianismo, ao introduzir a noção de pecado original,
introduziu a separação radical entre os humanos (pervertidos e finitos) e a
divindade (perfeita e infinita). Com isso, fez surgir a pergunta: como o finito
(humano) pode conhecer a verdade (infinita e divina)?
Eis porque, durante toda a Idade
Média, a fé tornou-se central para a Filosofia, pois era através dela que essas
perguntas eram respondidas. Auxiliada pela graça divina, a fé iluminava nosso
intelecto e guiava nossa vontade, permitindo à nossa razão o conhecimento do
que está ao seu alcance, ao mesmo tempo em que nossa alma recebia os mistérios
da revelação. A fé nos fazia saber (mesmo que não pudéssemos compreender como
isso era possível) que, pela vontade soberana de Deus, era concedido à nossa
alma imaterial conhecer as coisas materiais.
Os filósofos modernos, porém,
não aceitaram essas respostas e por esse motivo a questão do conhecimento
tornou-se central para eles.
Os gregos se surpreendiam que
pudesse haver erro, ilusão e mentira. Como a verdade – aletheia – era
concebida como presença e manifestação do verdadeiro aos nossos sentidos ou ao
nosso intelecto, isto é, como presença do Ser à nossa experiência sensível ou
ao puro pensamento, a pergunta filosófica só podia ser: Como é possível o erro
ou a ilusão? Ou seja, como é possível ver o que não é, dizer o que não é,
pensar o que não é?
Para os modernos, a situação é
exatamente contrária. Se a verdade depende da revelação e da vontade divinas, e
se nosso intelecto foi pervertido pela nossa vontade pecadora, como podemos
conhecer a verdade? Se a verdade depender da fé e se depender da fraqueza da
nossa vontade, como nossa razão poderá conhecê-la?
O cristianismo, particularmente
com santo Agostinho, trouxe a ideia de que cada ser humano é uma pessoa.
Essa ideia vem do Direito Romano, que define a pessoa como um sujeito de
direitos e de deveres. Se somos pessoas, somos responsáveis por nossos atos e
pensamentos. Nossa pessoa é nossa consciência, que é nossa alma dotada
de vontade, imaginação, memória e inteligência.
A vontade é livre e, aprisionada
num corpo passional e fraco, pode mergulhar nossa alma na ilusão e no erro.
Estar no erro ou na verdade dependerá, portanto, de nós mesmos e por isso
precisamos saber se podemos ou não conhecer a verdade e em que condições tal
conhecimento é possível. Os primeiros filósofos cristãos e os medievais
afirmavam que podemos conhecer a verdade, desde que a razão não contradiga a fé
e se submeta a ela no tocante às verdades últimas e principais.
A primeira tarefa que os
modernos se deram foi a de separar fé de razão, considerando cada uma delas
destinada a conhecimentos diferentes e sem qualquer relação entre si. A segunda
tarefa foi a de explicar como a alma-consciência, embora diferente dos corpos,
pode conhecê-los. Consideraram que a alma pode conhecer os corpos porque os
representa intelectualmente por meio das ideias e estas são imateriais como a
própria alma. A terceira tarefa foi a de explicar como a razão e o pensamento
podem tornar-se mais fortes do que a vontade e controlá-la para que evite o
erro.
O problema do conhecimento
torna-se, portanto, crucial e a Filosofia precisa começar pelo exame da capacidade
humana de conhecer, pelo entendimento ou sujeito do conhecimento. A teoria do
conhecimento volta-se para a relação entre o pensamento e as coisas, a
consciência (interior) e a realidade (exterior), o entendimento e a realidade;
em suma, o sujeito e o objeto do conhecimento.
Os dois filósofos que iniciam o
exame da capacidade humana para o erro e a verdade são o inglês Francis Bacon e
o francês René Descartes. O filósofo que propõe, pela primeira vez, uma teoria
do conhecimento propriamente dita é o inglês John Locke. A partir do século
XVII, portanto, a teoria do conhecimento torna-se uma disciplina central da
Filosofia.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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