"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Darwin (Parte 01/11)



(…)
Nem bem Alberto tinha dito “fim do capítulo”, alguém bateu na porta da cabana.
— Que outra escolha nós temos? — perguntou Sofia.
— É verdade… — murmurou Alberto.
Lá fora havia um homem muito velho, com cabelos compridos e barba. Com a mão direita segurava um bordão e com a esquerda um cartaz que mostrava um navio apinhado de animais de todas as espécies e tamanhos.  

— Quem é o senhor? — perguntou Alberto.
— Meu nome é Noé.
— Eu já podia imaginar.
— Sou o teu antecessor mais antigo, meu jovem. Será que já está fora de moda reconhecer o próprio antecessor?
— O que o senhor está segurando aí? — perguntou Sofia.
— Uma gravura que mostra todos os animais que foram salvos de um grande dilúvio. Tome, minha filha, é para você.
Sofia pegou o cartaz e o velho continuou:
— E agora preciso ir para casa regar as videiras.
Deu um pequeno salto, bateu os calcanhares no ar, e saiu pulando em direção à floresta como só um homem velho, mas de muito bom humor, seria capaz de fazer.
Sofia e Alberto fecharam a porta e sentaram-se. Sofia ficou olhando a gravura e ainda não tinha conseguido ver tudo, quando Alberto a arrancou de suas mãos.
— Primeiro vamos nos concentrar nas grandes linhas.
— Está certo.
— Esqueci de mencionar que Marx passou os últimos trinta e quatro anos de sua vida em Londres. Ele se mudou para lá em 1849 e morreu em 1883. Durante todo este tempo, Charles Darwin também morou nos arredores de Londres. Ele morreu em 1882 e foi sepultado com toda a pompa e circunstância na abadia de Westminster como um dos filhos mais ilustres da Inglaterra. Mas não é apenas no tempo e no espaço que os caminhos de Marx e Darwin se cruzam. Marx quis dedicar a Darwin a versão inglesa de sua grande obra, O capital, mas Darwin não aceitou. Quando Marx morreu, um ano depois de Darwin, seu amigo Friedrich Engels disse: “Assim como Darwin descobriu a lei da evolução da natureza orgânica, Marx descobriu a lei da evolução da história humana”.
— Entendo.
— Outro pensador importante, que também podemos relacionar com Darwin, foi o psicólogo Sigmund Freud. Mais de meio século mais tarde, Freud também passou seus últimos anos em Londres. Ele dizia que tanto a teoria da evolução, de Darwin, quanto sua própria psicologia do homem haviam ferido profundamente o “egoísmo ingênuo” do homem.
— São nomes demais. Vamos falar agora de Marx, Darwin ou Freud?
— Em termos bem gerais, podemos falar de uma corrente naturalista, que se estende de meados do século XIX até bem recentemente. Por “naturalismo” entende-se uma concepção de realidade que não aceita qualquer outra realidade a não ser a natureza e o mundo fenomenológico. Conseqüentemente, o naturalista considera o homem parte da natureza e o pesquisador natural parte exclusivamente de dados concretos da natureza, e não de especulações racionalistas ou de alguma outra forma de revelação divina.
— E isto vale tanto para Marx quanto para Darwin e Freud?
— Exatamente. As palavras-chave da filosofia e da ciência em meados do século passado [XIX] eram “natureza”, “meio ambiente”, “história”, “evolução” e “crescimento”. Marx havia dito que a consciência humana era um produto da base material de uma sociedade. Darwin mostrou que o homem era o produto de uma longa evolução biológica e o estudo de Freud sobre o inconsciente deixou claro que as ações dos homens freqüentemente são devidas a certos impulsos ou instintos “animais”, próprios de sua natureza.
— Acho que estou entendendo mais ou menos o que você está chamando de naturalismo. Mas não seria melhor falarmos de um de cada vez?
— Já falamos sobre Marx. Vamos falar agora sobre Darwin. Você certamente ainda se lembra de que os pré-socráticos queriam encontrar explicações naturais para os processos da natureza. Assim como através disso eles queriam se libertar das antigas explicações mitológicas, também Darwin precisava se libertar da doutrina cristã sobre a criação do homem e dos animais, vigente em sua época.
— Mas ele foi realmente um filósofo?

Extratos da obra de GAARDER, Jostein.
O Mundo de Sofia.  Romance da História da Filosofia.
São Paulo: Cia das Letras, 1996.

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