Cultura
Filosoficamente,
a palavra “cultura” nos sugere duas interpretações bastante amplas. A primeira
se deve à análise da evolução do espírito humano no decorrer da História. Isto
é, se pode constatar que a aglutinação das pessoas, dando origem às sociedades,
passa por modificações diversas no tempo e estas modificações apontam para um
sentido, para uma direção histórica, que pode ser lida, interpretada e, algumas
vezes, prevista. Assim, vê-se que o que antes eram formas de sociedade sem
muitos vínculos que as sustentassem como tal, foram, de tempos em tempos,
consolidando características particulares que as faziam diferir umas das
outras.
Um
determinado grupo pode possuir “marcas” próprias que não se confundem com as de
outro grupo. Estas “marcas” se materializam de muitas maneiras: hábitos,
crenças, trajes, idiomas, biótipos etc. Na medida em que estas marcas se
enraízam no cotidiano das pessoas, de modo a se tornarem uma parte inseparável
delas, então encontramos, neste grupo, uma identidade. De algum modo, todas as
pessoas deste grupo podem ser confundidas segundo algum aspecto; dizemos,
então, que elas estão inseridas numa determinada cultura. Mas esta imagem que
se reflete nos hábitos, nas crenças, nos trajes etc, e que chamamos de
identidade cultural não se congela no tempo, jamais deixa de mudar. A
identidade cultural de um grupo não deixa de se transformar, adquirindo novos
elementos e suprimindo outros.
A
cultura, portanto, se expressa na história. Ela se estabelece na forma de
nações, de religiões, de guerras, de filosofias, de línguas, de cidades, de
modas etc. Neste primeiro sentido de Cultura, como análise histórica da
peregrinação humana na Terra, existem duas linhas de pensamento filosófico que
se opõem uma à outra e que merecem um breve comentário.
A
primeira vê a Cultura como a progressiva manifestação do espírito humano na
Terra no decorrer do tempo. Segundo esta concepção, há um sentido que aponta
para um necessário avanço histórico do Espírito, do Ser. As diversas formas de
manifestações culturais pelas quais os povos já viveram e morreram seriam como
que etapas necessárias da trilha que o Espírito deve percorrer para evoluir.
Assim, a cultura que possuímos hoje é uma expressão aperfeiçoada do espírito em
relação à cultura que havia há dois séculos por exemplo. Ainda neste
raciocínio, a cultura que supostamente possuiremos no futuro será uma expressão
mais evoluída em relação à cultura que possuímos atualmente. Percebemos que
esta concepção de cultura é muito popular e bastante propalada de diversas maneiras
(por exemplo, os votos e as canções de Ano Novo). Esta concepção nos faz criar
um sentimento bastante íntimo de que vivemos, atualmente, em um mundo melhor do
que o do passado, e que o futuro sempre nos guarda boas-novas.
A
segunda se opõe à primeira na medida em que vê a História como fruto do
trabalho humano e não como a mera manifestação de um Espírito coletivo
abstrato. Enquanto na primeira opção não há nenhuma escolha (isto é, somente um
caminhar contínuo e progressivo no sentido da evolução, e o Homem e sua
História são apenas uma expressão passiva deste caminhar), já na segunda a
História é vista como o desenrolar dos diversos conflitos criados e resolvidos
pelo próprio homem. Assim, temos dois pontos de vista bastante distintos: no
primeiro, a história faz o Homem; no segundo, é o homem que faz a história; no
primeiro temos uma cultura que deve ser apenas aceita, não nos cabendo qualquer
poder de decisão sobre ela; no segundo ela é um produto imediato da ação, do trabalho
e das diversas atividades humanas, que são responsáveis diretas pelo que
acreditamos, comemos, vestimos, fazemos, enfim, pelo que somos.
A
primeira concepção pode ser chamada Idealismo, pois se baseia puramente num
movimento abstrato do conceito de Espírito. Já a segunda pode ser chamada de
Materialismo (materialismo histórico), pois resume a história à série de
atributos físicos que fazem com que o humano trabalhe no sentido da construção
de sua Cultura. Logo, a Cultura possui um duplo aspecto: ela pode ser encarada
como um Idealismo ou como um Materialismo. Ela é um Idealismo porque não
encontramos no mundo nenhum objeto físico que chamamos pelo nome de Cultura,
trata-se apenas de um conceito abstrato que fabricamos intelectualmente na
tentativa de inserir o Homem num tipo de teoria a respeito de sua situação no
planeta. Mas ela também é um Materialismo, na medida em que não vivemos apenas
de conceitos, vivemos cercados de objetos e de ações, estes são atributos
físicos de nossas vidas particulares e a base de qualquer conceito de cultura.
Mas
ainda falta pensarmos um pouco na segunda interpretação da palavra “Cultura”
apenas mencionada no início. Dissemos que, a partir do momento que o ser humano
se reúne para viver em grupo, ele começa a dotar este grupo de características
e marcas próprias que chamamos de identidade cultural. Estas marcas definem
culturas particulares, distinções entre os grupos. No entanto, podemos reunir
todos estes grupos sob a égide do mesmo signo e lhes conferir uma identidade universal:
a de ser Humano. Assim, esta identidade global é a máxima manifestação do
conceito de Cultura e não tem, absolutamente, nenhuma relação com a história,
como a primeira interpretação que mencionamos.
Podemos
notar que falamos dos diversos povos, nações e tribos como membros da raça
humana, ainda que estes povos, nações e tribos estejam muito distantes uns dos
outros, seja geograficamente, seja historicamente. Há, portanto, uma idéia - ou
hábitos - que faz dos elementos destes grupos distintos seres que possuem uma
identidade cultural bastante complexa e rica, contudo suficientemente precisa
para inseri-los dentro de um mesmo caudal cultural, dentro de uma mesma tribo
global. É claro que existem os aspectos da biologia que faz da nossa espécie
diferente das demais e vice-versa. No entanto, a característica que consolida o
ser humano como um grupo cultural único é a habilidade de pensar em si mesmo
como um ser religioso, racional, histórico, biológico, filosófico. Assim,
resumidamente, o ser humano constrói e aceita sua cultura na medida mesma em
que pensa e reflete sobre ela.
Fonte:
Palavra em Ação.
CD-ROM,
Claranto Editora.
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