Descartes e a dúvida
Neste
estágio de nosso aprendizado em Filosofia passaremos a verificar alguns dos
pensamentos que um pequeno grupo de filósofos produziu acerca, principalmente,
dos temas sobre os quais nos dedicamos no momento anterior de anteriormente.
Nem todos os filósofos que um dia já pensaram sobre estes temas serão trazidos
à baila. Também, nem todos os temas que já discutimos serão novamente
abordados; por outro lado, alguns como, por exemplo, o do Conhecimento, com o
qual iniciamos esta nossa última etapa de investigação crítica, será apontado
diversas vezes e de modos mais ou menos distintos por mais de um pensador. A
ordem em que estes temas vão aparecer aqui obedece à ordem cronológica com que
foram tratados pela história da filosofia; assim sendo, existem certos
pressupostos históricos que não devem ser ignorados - a ordem em que as aulas
acontecem é vital para a compreensão das mesmas.
Cada
um dos pensadores que iremos destacar de agora em diante teve uma produção
intelectual muitíssimo vasta. Muitos deles discutiram, de maneira global e
bastante detalhada, todos os temas sobre os quais nós falaremos apenas de
maneira superficial. Portanto, é mister não pensar que eles se restringiram ao
que deles iremos mencionar. Trata-se apenas de um recorte, por demais modesto,
dos principais pontos de suas vidas, não sob o ângulo das particularidades
mundanas comuns a todos que vivem ou viveram na Terra, mas sob o ângulo do
espanto filosófico com o qual cada um deles, de certa maneira, já se deparou.
O
momento do espanto é aquele em que a dúvida exige um trabalho, um esforço
incomum, no sentido da busca por uma satisfação intelectual que pode vir na
forma de uma filosofia, de uma teoria científica, de uma música, de um quadro,
enfim, de uma criação qualquer. Seja por quais vias forem que esta satisfação
possa surgir, ela será necessariamente provisória como a própria vida o é.
Então, novamente o espanto irá surgir com fôlego recobrado neste pensador, ou
em um outro que apareça depois dele, exigindo mais uma vez um novo esforço
intelectual e uma nova satisfação. Dúvida após dúvida, satisfação após
satisfação, teoria após teoria, a humanidade se aproveita dos sofrimentos e das
alegrias gerados por este contínuo movimento, de vai e vem que é como a própria
respiração do pensamento.
Descartes
e a Dúvida
René
Descartes nasceu na França e viveu do ano de 1596 a 1650. Seu trabalho mais
conhecido ganhou o nome de Discurso sobre o Método e nele
percebemos sua grande preocupação com o conhecimento, mais precisamente com a
maneira como o adquirimos e com os critérios que o tornam válido. Para
Descartes, o Conhecimento só merece este nome, isto é, só é verdadeiro quando
obedece a certos critérios de validação. Para entendermos o que seriam estes
critérios de validação do conhecimento em Descartes, vamos analisar um outro de
seus trabalhos, que ficou conhecido pelo nome de Meditações.
Descartes
começa esta obra se colocando numa posição muito difícil. Toda a discussão que
ele irá iniciar gira em torno da pergunta “Como podemos saber que realmente
conhecemos aquilo que pensamos conhecer?”. Mas como ele chega a se perguntar
isto? De que maneira esta dúvida surge para ele? Ela simplesmente aparece de um
dia para o outro, empurrando-o a filosofar sobre o conhecimento? Vejamos.
Descartes irá narrar um evento bastante singular de sua vida e que o levou a
este tipo de questionamento.
Conta
ele que, um certo dia, quando lia em uma poltrona diante da lareira de sua
casa, ele adormeceu. Sonhou que se achava sentado numa poltrona exatamente como
a que estava sentado ao adormecer, que estava vestido exatamente como quando em
vigília, que também lia o mesmo livro que antes estava lendo, que todo o
cenário em volta dele era o mesmo e que a lareira também ardia como quando
desperto. Ao acordar, percebeu que seu sonho tinha a vivacidade e a riqueza de
detalhes de quando ele estava de olhos abertos e consciente. De fato, ele só
conseguiu perceber que se tratava de um sonho depois de acordar, tal era o
realismo daquele sonho. A dúvida e o espanto, então, se abateram sobre ele,
criando a seguinte pergunta: se o sonho poderia possuir uma tal vivacidade e
riqueza em detalhes, idênticos ao da vida em vigília, como saber quando se está
dormindo ou quando se está acordado? Em outras palavras, a sua dúvida era a
respeito de como podemos saber o que seja isso que chamamos de realidade e,
consequentemente, como podemos diferi-la do sonho e da fantasia.
Geralmente
criamos uma distinção bastante radical entre realidade e fantasia. Nos baseando
nesta distinção, afirmamos coisas que pensamos serem verdades, pois se
fundamentam na realidade; e afirmamos coisas que pensamos serem falsidades ou
quimeras pois, ao contrário das primeiras, se baseiam na fantasia ou na
imaginação. Como a maioria de nós, Descartes também tinha esta distinção bem
clara na sua cabeça até o momento em que este sonho o fez perceber que, talvez,
essa certeza não esteja assim tão firme quanto pensamos. Ele percebeu que era
possível que, em algum momento, poderia estar dormindo e acreditar que estava
acordado ou vice-versa. Ele percebeu que o que separa a fantasia da realidade,
que, na maioria das vezes, é a percepção consciente, pode, muitas vezes, ser
colocada em dúvida e, assim, as próprias categorias de fantasia e de realidade
podem deixar de existir.
Este
é o momento clássico do espanto no conhecimento, quando já não temos mais
certeza das coisas que antes considerávamos como certas. Mas este espanto pode
ser considerado bom? Talvez sim, talvez não. Para os filósofos isto é muito
bom, pois desperta a investigação crítica. Contudo, para as pessoas que estão
interessadas em resultados mais práticos e imediatos, como, por exemplo,
construir foguetes que coloquem satélites de comunicação em órbita da Terra, é
uma enorme tolice e perda de tempo se propor este tipo de inquirição. Contudo,
até o construtor de foguetes, mesmo sem o saber, está de acordo com algum tipo
de concepção filosófica que, em algum momento do passado, surgiu de uma
situação de espanto semelhante a de Descartes.
Descartes sabia que sua
dúvida não era comum, que a maioria das pessoas não encontrava dificuldade
nenhuma em diferir uma suposta realidade da fantasia comum dos sonhos. Porém,
ele também sabia que uma argumentação deste tipo, baseada no testemunho
popular, não tinha o rigor da análise filosófica. O conhecimento popular,
também conhecido como Senso Comum, não costuma apresentar as demonstrações
assim como a filosofia imagina que elas devam ser. Em geral, o senso comum
fornece as explicações acerca da existência apontando para exemplos do presente
ou do passado como, por exemplo, “A realidade é o meu cachorro, a minha árvore,
a minha casa, o meu trabalho etc”.
Ele estava interessado em
outro tipo de explicação. Em uma que apresentasse uma argumentação baseada no
uso exclusivo da Razão e não nas que se baseassem numa imensa lista de objetos
e opiniões particulares. Ele sabia que estes objetos opiniões poderiam variar
de pessoa para pessoa, de lugar para lugar, de época para época e que, por
isso, as explicações do senso comum eram particulares e não poderiam ter o
poder de convencer a todos acerca do que fosse, ou deixasse de ser, a
Realidade. Ele estava interessado em uma explicação que, ao contrário, fosse
válida para todos os seres humanos, na medida em que, em princípio, todos os
seres humanos são dotados de Razão; que fosse Universal portanto. Mas mais do
que isso, Descartes acreditava que uma explicação sobre a Realidade deveria ser
necessária, isto é, que qualquer ser dotado da faculdade do raciocínio chegaria
necessariamente às mesmas conclusões que ele se obedecesse a algumas regras
simples de investigação, se obedecesse a um método.
Fonte:
Palavra em Ação.
CD-ROM,
Claranto Editora.
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