A instituição eclesiástica
Quando estudamos a ética, vimos
que o cristianismo, diferentemente da maioria das religiões antigas, não surge
como religião nacional ou de um povo ou de um Estado determinados. No entanto,
ele deveria ter sido uma religião nacional, uma vez que Jesus se apresentava
como o messias esperado pelo povo judaico. Em outras palavras, se Jesus tivesse
sido vitorioso, teria sido capitão, rei e sacerdote, pois era assim que o
messias havia sido imaginado e esperado. Derrotado pela monarquia judaica, que
usara o poder do Império Romano para julgá-lo e condená-lo, Jesus ressurge
(ressuscita) como figura puramente espiritual, rei de um reino que não é deste
mundo. O cristianismo se constitui, portanto, à margem do poder político e
contra ele, pois os “reinos deste mundo” serão, pouco a pouco, vistos como obra
de Satanás para a perdição do gênero humano.
Separado da ordem política
estatal, o cristianismo será organizado de maneira semelhante a outras crenças
religiosas não oficiais: tomará a forma de uma seita religiosa. Nessa época,
seitas religiosas e correntes filosóficas que não possuíam a polis como referência – pois Roma tudo
dominava imperialmente – não podiam mais dirigir-se a uma comunidade política
determinada, a um povo determinado, e por isso dirigiam-se ao ser humano em
geral, sem distinção de nação ou povo.
O poder imperial romano criara,
sem o saber, a ideia do homem universal, sem pátria e sem comunidade política.
O cristianismo será uma seita religiosa dirigida aos seres humanos em geral,
com a promessa de salvação individual eterna. À ideia política da lei escrita e
codificada em regras objetivas contrapõe a ideia de lei moral invisível (o
dever à obediência a Deus e o amor ao próximo), inscrita pelo Pai no coração de
cada um.
Todavia, a seita cristã irá
diferenciar-se de outras porque a herança judaica – dos primeiros apóstolos – e
romana – dos primeiros padres – conduzirá à ideia de povo (de Deus) e de lei
(de Deus), isto é, a duas ideias políticas.
A seita cristã é uma comunidade
cujos membros formam o povo de Deus
sob a lei de Deus. Essa comunidade é
feita de iguais – os filhos de Deus redimidos pelo Filho -, que recebem em
conjunto a Palavra Sagrada e, pelo batismo e eucaristia, participam da nova lei
– a aliança do Pai com seu povo pela mediação do Filho. A comunidade é a ekklesia, isto é, a assembléia dos
fiéis, a Igreja. E esta é designada
como reino de Deus. Povo, lei, assembléia e reino: essas palavras indicam, por
si mesmas, a vocação política do cristianismo, pois escolhe para referir-se a
si mesmo os vocábulos da tradição política judaica e romana.
A ekklesia organiza-se a partir de uma autoridade constituída pelo
próprio Cristo quando, na última ceia, autoriza os apóstolos a celebrar a
eucaristia (o pão e o vinho como símbolos do corpo e sangue do messias) e, no
dia de Pentecostes, ordena-lhes que preguem ao mundo inteiro a nova lei e a Boa
Nova (o Evangelho).
A autoridade apostólica não se
limita a batismo, eucaristia e evangelização. Jesus deu aos apóstolos o poder
para ligar os homens a Deus e dele desligá-los, quando lhes disse, através de
Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do
inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino: o que
ligares na Terra será ligado no Céu, o que desligares na Terra será desligado
no Céu”[i].
Está fundada a Igreja como instituição de poder. Esse poder, como se observa, é
teocrático, pois sua fonte é o próprio Deus; e é superior ao poder político
temporal, uma vez que este seria puramente humano, frágil e perecível, criado
por sedução demoníaca.
A ekklesia, comunidade de bons e justos, separada do Estado e do
poder imperial, organiza-se com normas e regras que estabelecem hierarquias de
autoridade e de poder, formando o que o romano santo Agostinho chamará de Civitas Dei, a Cidade de Deus, oposta à
Cidade dos Homens, injusta e satânica, isto é, Roma.
Essa instituição eclesiástica
conseguirá converter o imperador Constantino, transformará o cristianismo em
religião oficial do Império Romano e absorverá a estrutura militar e
burocrática do Império em sua própria organização.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
[i]
Mt 16.18-19: “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei
a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela. Dar-te-ei as
chaves do reino dos céus: o que ligares na terra, terá sido ligado nos céus; e
o que desligares na terra, terá sido desligado nos céus.”
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