"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A instituição eclesiástica


Quando estudamos a ética, vimos que o cristianismo, diferentemente da maioria das religiões antigas, não surge como religião nacional ou de um povo ou de um Estado determinados. No entanto, ele deveria ter sido uma religião nacional, uma vez que Jesus se apresentava como o messias esperado pelo povo judaico. Em outras palavras, se Jesus tivesse sido vitorioso, teria sido capitão, rei e sacerdote, pois era assim que o messias havia sido imaginado e esperado. Derrotado pela monarquia judaica, que usara o poder do Império Romano para julgá-lo e condená-lo, Jesus ressurge (ressuscita) como figura puramente espiritual, rei de um reino que não é deste mundo. O cristianismo se constitui, portanto, à margem do poder político e contra ele, pois os “reinos deste mundo” serão, pouco a pouco, vistos como obra de Satanás para a perdição do gênero humano.
Separado da ordem política estatal, o cristianismo será organizado de maneira semelhante a outras crenças religiosas não oficiais: tomará a forma de uma seita religiosa. Nessa época, seitas religiosas e correntes filosóficas que não possuíam a polis como referência – pois Roma tudo dominava imperialmente – não podiam mais dirigir-se a uma comunidade política determinada, a um povo determinado, e por isso dirigiam-se ao ser humano em geral, sem distinção de nação ou povo.
O poder imperial romano criara, sem o saber, a ideia do homem universal, sem pátria e sem comunidade política. O cristianismo será uma seita religiosa dirigida aos seres humanos em geral, com a promessa de salvação individual eterna. À ideia política da lei escrita e codificada em regras objetivas contrapõe a ideia de lei moral invisível (o dever à obediência a Deus e o amor ao próximo), inscrita pelo Pai no coração de cada um.  

Todavia, a seita cristã irá diferenciar-se de outras porque a herança judaica – dos primeiros apóstolos – e romana – dos primeiros padres – conduzirá à ideia de povo (de Deus) e de lei (de Deus), isto é, a duas ideias políticas. A seita cristã é uma comunidade cujos membros formam o povo de Deus sob a lei de Deus. Essa comunidade é feita de iguais – os filhos de Deus redimidos pelo Filho -, que recebem em conjunto a Palavra Sagrada e, pelo batismo e eucaristia, participam da nova lei – a aliança do Pai com seu povo pela mediação do Filho. A comunidade é a ekklesia, isto é, a assembléia dos fiéis, a Igreja. E esta é designada como reino de Deus. Povo, lei, assembléia e reino: essas palavras indicam, por si mesmas, a vocação política do cristianismo, pois escolhe para referir-se a si mesmo os vocábulos da tradição política judaica e romana.
A ekklesia organiza-se a partir de uma autoridade constituída pelo próprio Cristo quando, na última ceia, autoriza os apóstolos a celebrar a eucaristia (o pão e o vinho como símbolos do corpo e sangue do messias) e, no dia de Pentecostes, ordena-lhes que preguem ao mundo inteiro a nova lei e a Boa Nova (o Evangelho).
A autoridade apostólica não se limita a batismo, eucaristia e evangelização. Jesus deu aos apóstolos o poder para ligar os homens a Deus e dele desligá-los, quando lhes disse, através de Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino: o que ligares na Terra será ligado no Céu, o que desligares na Terra será desligado no Céu”[i]. Está fundada a Igreja como instituição de poder. Esse poder, como se observa, é teocrático, pois sua fonte é o próprio Deus; e é superior ao poder político temporal, uma vez que este seria puramente humano, frágil e perecível, criado por sedução demoníaca.
A ekklesia, comunidade de bons e justos, separada do Estado e do poder imperial, organiza-se com normas e regras que estabelecem hierarquias de autoridade e de poder, formando o que o romano santo Agostinho chamará de Civitas Dei, a Cidade de Deus, oposta à Cidade dos Homens, injusta e satânica, isto é, Roma.
Essa instituição eclesiástica conseguirá converter o imperador Constantino, transformará o cristianismo em religião oficial do Império Romano e absorverá a estrutura militar e burocrática do Império em sua própria organização.

Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.



[i] Mt 16.18-19: “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus: o que ligares na terra, terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra, terá sido desligado nos céus.” 

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