As teorias teológico-políticas
Na elaboração da teologia
política, os teóricos cristãos dispunham de três fontes principais: a Bíblia
latina, os códigos dos imperadores romanos, conhecidos como Direito Romano, e
as ideias retiradas de algumas poucas obras conhecidas de Platão, Aristóteles e
sobretudo Cícero.
De Platão, vinha a ideia da
comunidade justa, organizada hierarquicamente e governada por sábios
legisladores. De Aristóteles, vinha a ideia de que a finalidade do poder era a
justiça, como bem supremo da comunidade. De Cícero, a ideia do Bom Governo do
príncipe virtuoso, espelho para a comunidade. De todos eles, a ideia de que a
política era resultado da Natureza e da Razão.
No entanto, essas ideias
filosóficas precisavam ser conciliadas com a outra fonte do conhecimento
político, a Bíblia. E a conciliação não era fácil, uma vez que a Escritura
Sagrada não considera o poder como algo natural e originado da razão, mas
proveniente da vontade de Deus, sendo, portanto, teocrático.
A Bíblia, como se sabe, é um
conjunto de textos de proveniências, épocas e autores muito diferentes,
escritos em várias línguas – hebraico, aramaico, grego, etc. – e formando dois
grupos principais, o Antigo e o Novo Testamento. Ao ser traduzida para o latim,
os tradutores só dispunham da língua culta romana e dos textos que formavam o
chamado Direito Romano. A tradução verteu os diferentes textos para a linguagem
latina clássica, fazendo prevalecer a língua jurídica e legal romana, combinando,
assim, a forte tradição legalista judaica e a latina. Essa Bíblia latinizada
servirá de base para as teorias políticas e fornecerá os critérios para decidir
o que aceitar e o que recusar das ideias de Platão, Aristóteles e Cícero,
combinando de maneira complexa e, às vezes, pouco aceitável, as concepções
filosóficas e as teocráticas.
As teorias do poder
teológico-político, embora tenham recebido diferentes formulações no correr da
Idade Média, variando conforme as condições históricas exigiam, apresentavam os
seguintes pontos em comum:
● o poder é teocrático, isto é, pertence a Deus e dele vem aos homens por
ele escolhidos para representá-lo. O fundamento dessa ideia é uma passagem do
Antigo Testamento onde se lê: “Todo poder vem do Alto / Por mim reinam os reis
e governam os príncipes”[i]. O poder é um fator divino ou uma graça divina
e o governante não representa os governados, mas representa Deus perante os
governados. O regime político é a monarquia teocrática em que o monarca é rei pela graça de Deus. A comunidade
política se forma pelo pacto de
submissão dos súditos ao rei;
● o rei traz a lei em seu peito e o que apraz ao rei tem força de lei. O
rei é, portanto, a fonte da lei e da justiça – afirma-se que é pai da lei e
filho da justiça. Sendo autor da lei e tendo o poder pela graça de Deus, está
acima das leis e não pode ser julgado por ninguém, tendo poder absoluto. O
fundamento dessa ideia é retirado de um preceito do Direito Romano que afirma:
“Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu”.
Se não foi o povo quem deu o poder ao rei, pois o povo não tem o poder, uma
vez que este a Deus pertence, o povo também não pode julgar o rei nem tirar-lhe
o poder. Se um rei for tirânico e injusto, nem assim os súditos podem
resistir-lhe nem depô-lo, pois ele está no poder pela vontade de Deus, que,
para punir os pecados do povo, o faz sofrer sob um tirano. Este é um flagelo de
Deus. Porque o poder vem do alto, porque o rei é pai da lei e está acima dela,
e porque os súditos fizeram o pacto de submissão, o rei é intocável;
● o príncipe cristão deve possuir o conjunto das virtudes cristãs – fé,
esperança e caridade – e o conjunto das virtudes definidos por Cícero e Sêneca
como próprias do Bom Governo. Sendo o espelho da comunidade, em sua pessoa
devem estar encarnadas as qualidades cristãs que a comunidade deve imitar.
Mesmo que considere a política algo natural – como dizia Aristóteles e
dirão vários teólogos, como são Tomás de Aquino – e mesmo que se considere que
a comunidade política é obra da razão – como diziam Platão e Cícero e afirmarão
vários teólogos, como Guilherme de Ockham -, ainda assim, a finalidade suprema
do poder político, isto é, o bem e a justiça, não são estritamente terrenos ou
temporais, mas espirituais. O príncipe é responsável pela finalidade mais alta
da política: a salvação eterna de seus súditos;
● a comunidade e o rei formam o corpo
político: a cabeça é a coroa ou o rei, o peito é a legislação sob a guarda
dos magistrados e conselheiros do rei, os membros superiores são os senhores ou
barões que formam os exércitos do rei e a ele estão ligados por juramento de
fidelidade ou de vassalagem, e os membros inferiores são o povo que trabalha
para o sustento do corpo político. A polis
platônica é, assim, transformada no corpo
político do rei;
● a hierarquia política e social é considerada ordenada por Deus e natural.
O mundo é um cosmos, isto é, uma
ordem fixa de lugares e funções que cada ser (minerais, vegetais, animais e
humanos) ocupa necessariamente e nos quais realiza sua natureza própria. Os
seres do cosmos estão distribuídos em
graus e o grau inferior deve obediência ao superior, submetendo-se a ele.
No caso da comunidade política, a hierarquia obedece aos critérios das
funções e da riqueza, formando ordens
sociais e corpos ou corporações que
são órgãos do corpo político do rei. Não existe a ideia de indivíduo, mas de
ordem ou corporação a que cada um pertence por vontade divina, por natureza e
por hereditariedade, ninguém podendo subir ou descer na hierarquia a não ser
por vontade expressa do rei. Cada um nasce, vive e morre no mesmo lugar social,
transmitindo-o aos descendentes.
Esse papel central que as teorias conferem à ideia de cosmos hierárquico responde a três exigências práticas: manter a
concepção imperial romana e eclesiástica, manter a concepção teocrática judaica
e, sobretudo, oferecer uma garantia teórico-política a uma sociedade
fragmentada em propriedades isoladas e espalhadas pelo antigo território do
Império para as quais já não existe a referência urbana de Roma;
● no topo da hierarquia encontram-se o papa e o imperador. O primeiro exige
o poder espiritual, o segundo, o temporal. Dada a ruralização da vida
econômico-social e sua fragmentação, cada região possui um conjunto de senhores
que escolhe um rei entre seus pares, garantindo-lhe – e à sua dinastia – a
permanência indefinida no poder. Este só passa a outro rei se o reinante morrer
sem herdeiro do sexo masculino, ou se trair seus pares e for por eles deposto,
ou se houver uma guerra na qual seja derrotado e o vencedor tenha força para
reivindicar o poder régio. A assembléia dos reis subordina-se ao Grande Rei ou
imperador da Europa (Sacro Império Romano-Germânico), que possui o poder
teocrático, isto é, ele é escolhido por Deus e não pelos outros reis;
● a justiça, finalidade da comunidade cristã, é a hierarquia de submissão e
obediência do inferior ao superior, pois é essa a ordem natural criada pela lei
divina. A vida temporal é inferior à vida espiritual e por isso a finalidade
maior do governante é a salvação da alma imortal de seus súditos, pela qual
responderá perante Deus.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
[i]
Pv 8.15-16: “Por meu intermédio reinam os reis, e os príncipes decretam
justiça. Por meu intermédio governam os príncipes, os nobres e todos os juízes
da terra.”
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