A invenção da política
Quando se afirma que os gregos e
romanos inventaram a política, o que se diz é que desfizeram aquelas
características da autoridade e do poder. Embora, nos começos, gregos e romanos
tivessem conhecido a organização econômico-social de tipo despótico ou
patriarcal, um conjunto de medidas foram tomadas pelos primeiros dirigentes –
os legisladores – de modo a impedir a concentração dos poderes e da autoridade
nas mãos de um rei, senhor da terra, da justiça e das armas, representante da
divindade.
A propriedade da terra não se
tornou propriedade régia ou patrimônio privado do rei, nem se tornou
propriedade comunal ou da aldeia, mas manteve-se como propriedade de famílias
independentes, cuja peculiaridade estava em não formarem uma casta fechada
sobre si mesma, porém aberta à incorporação de novas famílias e de indivíduos ou
não-proprietários enriquecidos no comércio.
Apesar das diferenças históricas
na formação da Grécia e de Roma, há três aspectos comuns a ambas e decisivos
para a invenção da política. O primeiro, como assinalamos há pouco, é a forma
da propriedade da terra; o segundo, o fenômeno da urbanização; e o terceiro, o
modo de divisão territorial das cidades.
Como a propriedade da terra não
pertencia à aldeia nem ao rei, mas às famílias independentes, e como as guerras
ampliavam o contingente de escravos, formou-se na Grécia e em Roma uma camada
pobre de camponeses que migraram para as aldeias, ali se estabeleceram como
artesãos e comerciantes, prosperaram, fizeram, das aldeias, cidades, passaram a
disputar o direito ao poder com as grandes famílias agrárias. Uma luta de
classes perpassa a história grega e romana exigindo solução.
A urbanização significou uma
complexa rede de relações econômicas e sociais que colocava em confronto não só
proprietários agrários, de um lado, e artesãos e comerciantes, de outro, mas
também a massa de assalariados da população urbana, os não-proprietários,
genericamente chamados de “os pobres”.
A luta de classes incluía,
assim, lutas entre os ricos e lutas entre ricos e pobres. Tais lutas eram
decorrentes do fato de que todos os indivíduos participavam das guerras
externas, tanto para a expansão territorial, quanto para a defesa de sua
cidade, formando as milícias dos nativos da cidade. Essa participação militar
fazia com que todos se julgassem no direito, de algum modo, de intervir nas decisões
econômicas e legais das cidades. A luta das classes pedia uma solução. Essa
solução foi a política.
Finalmente, os primeiros chefes
políticos ou legisladores introduziram uma divisão territorial das cidades que
visava a diminuir o poderio das famílias ricas agrárias, dos artesãos e
comerciantes urbanos ricos e à satisfazer a reivindicação dos camponeses pobres
e dos artesãos e assalariados urbanos pobres. Em Atenas, por exemplo, a polis foi subdividida em unidades
sociopolíticas denominadas demos; em Roma,
em tribus.
Quem nascesse num demos ou numa tribus, independentemente de sua situação econômica, tinha
assegurado o direito de participar das decisões da cidade. No caso de Atenas,
todos os naturais do demos tinham o
direito de participar diretamente do poder, donde o regime ser uma democracia. Em Roma, os
não-proprietários ou os pobres formavam a plebe,
que tinha o direito de eleger um representante – o tribuno da plebe – para
defender e garantir os interesses plebeus junto aos interesses e privilégios
dos que participavam diretamente do poder, os patrícios, que constituíam o populus romanus. O regime político
romano era, assim, uma oligarquia.
Diante do poder despótico,
gregos e romanos inventaram o poder político porque:
● separaram a autoridade pessoal privada do chefe de família – senhorio
patriarcal e patrimonial – e o poder impessoal público, pertencente à
coletividade; separaram privado e público e impediram a identificação do poder
político com a pessoa do governante. Os postos de governo eram preenchidos por
eleições entre os cidadãos, de modo que o poder deixou de ser hereditário;
● separaram autoridade militar e poder civil, subordinando a primeira ao
segundo. Isso não significa que em certos casos, como em Esparta e Roma, o
poder político não fosse também um poder militar, mas sim que as missões
militares deviam ser, primeiro, discutidas e aprovadas pela autoridade política
e só depois realizadas. Os chefes militares não eram vitalícios nem seus cargos
eram hereditários, mas eram eleitos periodicamente pelas assembleias dos
cidadãos;
● separaram autoridade mágico-religiosa e poder temporal laico, impedindo a
divinização dos governantes. Isso não significa que o poder político deixasse
de ter laços com a autoridade religiosa – os oráculos, na Grécia, e os
augúrios, em Roma, eram respeitados firmemente pelo poder político. Significa, porém,
que os dirigentes desejavam a aprovação e a proteção dos deuses, sem que isso
implicasse a divinização dos governantes e a submissão da política à autoridade
sacerdotal;
● criaram a ideia e a prática da lei como expressão de uma vontade coletiva
e pública, definidora dos direitos e deveres para todos os cidadãos, impedindo
que fosse confundida com a vontade pessoal de um governante. Ao criarem a lei e
o direito, afirmaram a diferença entre o poder político e todos os outros
poderes e autoridades existentes na sociedade, pois conferiram a uma instância
impessoal e coletiva o direito exclusivo ao uso da força para punir crimes,
reprimir revoltas e matar para vingar, em nome da coletividade, um delito
julgado intolerável por ela. Em outras palavras, retiraram dos indivíduos o
direito de fazer justiça com as próprias mãos e de vingar por si mesmos uma
ofensa ou um crime. O monopólio da força, da vingança e da violência passou para
o Estado, sob a lei e o direito;
● criaram instituições públicas para aplicação das leis e garantia dos
direitos, isto é, os tribunais e os magistrados;
● criaram a instituição do erário público ou do fundo público, isto é, dos
bens e recursos que pertencem à sociedade e são por ela administrados por meio
de taxas, impostos e tributos, impedindo a concentração da propriedade e da
riqueza nas mãos dos dirigentes;
● criaram o espaço político ou espaço público – a assembléia grega e o
senado romano -, no qual os que possuem direitos iguais de cidadania discutem
suas opiniões, defendem seus interesses, deliberam em conjunto e decidem por
meio do voto, podendo, também pelo voto, revogar uma decisão tomada. É esse o
coração da invenção política. De fato, e como vimos, a marca do poder despótico
é o segredo, a deliberação e a decisão a portas fechadas. A política, ao
contrário, introduz a prática da publicidade, isto é, a exigência de que a
sociedade conheça as deliberações e participe da tomada de decisão.
Além disso, a existência do espaço público de discussão, deliberação e
decisão significa que a sociedade está aberta aos acontecimentos, que as ações
não foram fixadas de uma vez por todas por alguma vontade transcendente, que
erros de avaliação e de decisão podem ser corrigidos, que uma ação pode gerar
problemas novos, não previstos nem imaginados, que exigirão o aparecimento de
novas leis e novas instituições. Em outras palavras, gregos e romanos tornaram
a política inseparável do tempo e, como vimos no caso da ética, ligada à noção
de possível ou de possibilidade, isto é, a ideia de uma criação contínua da
realidade social.
Para responder às diferentes formas assumidas pelas lutas de classes, a
política é inventada de tal maneira que, a cada solução encontrada, um novo
conflito ou uma nova luta podem surgir, exigindo novas soluções. Em lugar de
reprimir os conflitos pelo uso da força e da violência das armas, a política
aparece como trabalho legítimo dos conflitos, de tal modo que o fracasso nesse
trabalho é a causa do uso da força e da violência.
A democracia ateniense e as oligarquias de Esparta e da república romana
fundaram a idéia e a prática da política na Cultura ocidental. Eis por que os
historiadores gregos, quando a Grécia caiu sob o domínio do império de
Alexandre da Macedônia, e os historiadores romanos, quando Roma sucumbiu ao
domínio do império dos césares, falaram em corrupção e decadência da política:
para eles, o desaparecimento da polis
e da res publica significava o
retorno ao despotismo e o fim da vida política propriamente dita.
Evidentemente, não devemos cair em anacronismos, supondo que gregos e
romanos instituíram uma sociedade e uma política cujos valores e princípios
fossem idênticos aos nossos. Em primeiro lugar, a economia era agrária e
escravista, de sorte que uma parte da sociedade – os escravos – estava excluída
dos direitos políticos e da vida política. Em segundo lugar, a sociedade era
patriarcal e, conseqüentemente, as mulheres também estavam excluídas da
cidadania e da vida pública. A exclusão atingia também os estrangeiros e os
miseráveis.
A cidadania era exclusiva dos homens adultos livres nascidos no território
da Cidade. Além disso, a diferença de classe social nunca era apagada, mesmo
que os pobres tivessem direitos políticos. Assim, para muitos cargos, o
pré-requisito da riqueza vigorava e havia mesmo atividades portadoras de
prestígio que somente os ricos podiam realizar. Era o caso, por exemplo, da
liturgia grega e do evergetismo romano, isto é, de grandes doações em dinheiro
à cidade para festas, construção de templos e teatros, patrocínio de jogos
esportivos, de trabalhos artísticos, etc.
O que procuramos apontar não foi a criação de uma sociedade sem classes,
justa e feliz, mas a invenção da política como solução e resposta que uma
sociedade oferece para suas diferenças, seus conflitos e suas contradições, sem
escondê-los sob a sacralização do poder e sem fechar-se à temporalidade e às
mudanças.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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