"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

O dualismo do poder


No final da Idade Média, sobretudo com a retomada das obras de Aristóteles pelos teólogos, haverá um esforço para separar a Cidade de Deus – a Igreja – e a Cidade dos Homens – a comunidade política.
Considera-se que a primeira foi instituída e fundada diretamente por Deus com a doação das Chaves do Reino aos apóstolos, mas a segunda foi instituída ou fundada pela Natureza, que fez o homem um ser racional e um animal político. Sem dúvida, a boa cidade é a cidade dos homens cristã, em harmonia com a Cidade de Deus, mas as instituições políticas devem ser consideradas humanas, criadas em concordância com a ordem e a lei naturais, derivadas da lei divina eterna.
Um dos teóricos mais importantes da naturalidade da política é o teólogo são Tomás de Aquino, para quem, sendo o homem um animal social, a sociabilidade natural já existia no Paraíso, antes da queda e da expulsão dos seres humanos. Após o pecado original, os seres humanos não perderam sua natureza sociável e, por isso, naturalmente organizaram-se em comunidades, deram-se leis e instituíram as relações de mando e obediência, criando o poder político.
Diferentemente de santo Agostinho, para quem o pecado tornara o homem perverso e violento, injusto e fundador da Cidade dos Homens, injusta como ele, para são Tomás, os humanos perderam a inocência original, mas não perderam a natureza original que lhes fora dada por Deus. Por esse motivo, neles permaneceu o senso de justiça, entendida como o dever de dar a cada um o que lhe é devido, e com ela fundaram a comunidade política.  

A finalidade da comunidade política é a ordem – o inferior deve obedecer ao superior – e a justiça – dar a cada um segundo suas necessidades e méritos. Ordem e justiça definem a comunidade política como o único instrumento humano legítimo para assegurar o bem comum.
Na mesma linha de separação entre poder espiritual da Igreja e poder temporal da comunidade política, encontra-se o teólogo inglês Guilherme de Ockham, que, para melhor definir a justiça e o bem comum, introduz a ideia de direito subjetivo natural.
Para que a comunidade política possa realizar a justiça, isto é, dar a cada um o que lhe é devido segundo suas necessidades e seus méritos, é preciso que o legislador e o magistrado possuam um critério ou uma medida que defina o justo. Essa medida é o direito subjetivo natural de cada um e de todos os homens como o direito à vida, à consciência e aos bens materiais e espirituais necessários à garantia da vida e da consciência.
Com são Tomás e Ockham, novas ideias são trazidas à teoria política, ainda que continue teológica, isto é, referida à vontade suprema de Deus. Diante da tradição teocrática medieval, são novas as ideias de comunidade política natural, lei humana política e direito natural dos indivíduos como sujeitos dotados de consciência e de vontade.
Os dois teólogos mantêm a ideia de bom governo do príncipe cristão virtuoso e a de que a monarquia é a forma natural e melhor de governo, a mais adequada para realizar a justiça como bem comum. Conservam também a ideia de hierarquia natural criada pela lei divina eterna e concretizada pela lei natural. Finalmente, introduzem o primeiro esboço do que viria a ser conhecido, com a Reforma Protestante, como o direito de resistência dos súditos do tirano.
Os governados não podem depor nem matar o tirano, mas podem resistir a ele, buscando instrumentos legais que contestem sua autoridade, forçando-o a abdicar do poder. Um dos instrumentos legais mais importantes para isso é a ideia de direito subjetivo natural: quando este é violado pelo governante, o governo se torna ilegítimo, o pacto de submissão perde a validade e o governante deve abdicar do poder.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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