Finalidade da vida política
Para os gregos, a finalidade da
vida política era a justiça na comunidade.
A noção de justiça fora,
inicialmente, elaborada em termos míticos, a partir de três figuras principais:
themis, a lei divina que institui a
ordem do Universo; cosmos, a ordem
universal estabelecida pela lei divina; e dike,
a justiça entre as coisas e entre os homens, no respeito às leis divinas e à
ordem cósmica. Pouco a pouco, a noção de dike
torna-se a regra natural para a ação das coisas e dos homens e o critério para
julgá-las.
A ideia de justiça se refere,
portanto, a uma ordem divina e natural, que regula, julga e pune as ações das
coisas e dos seres humanos. A justiça é a lei e a ordem do mundo, isto é, da
Natureza ou physis. Lei (nomos), Natureza (physis) e ordem (cosmos)
constituem, assim, o campo da ideia de justiça.
A invenção da política exigiu
que as explicações míticas fossem afastadas – themis e dike deixaram de
ser vistas como duas deusas que impunham ordem e leis ao mundo e aos seres
humanos, passando a significar as causas
que fazem haver ordem, lei e justiça na Natureza e na polis. Justo é o que segue a ordem natural e respeita a lei
natural. Mas a polis existe por
natureza ou por convenção entre os homens? A justiça e a lei política são
naturais ou convencionais? Essas indagações colocam, de um lado, os sofistas,
defensores do caráter convencional da justiça e da lei, e, de outro lado,
Platão e Aristóteles, defensores do caráter natural da justiça e da lei.
Para os sofistas, a polis nasce por convenção entre os seres
humanos quando percebem que lhes é mais útil a vida em comum do que em
isolamento. Convencionam regras de convivência que se tornam leis, nomos. A justiça é o consenso quanto às
leis e a finalidade da política é criar e preservar esse consenso.
Se a polis e as leis são convenções humanas, podem mudar, se mudarem as
circunstâncias. A justiça será permitir a mudança das leis sem que isso destrua
a comunidade política, e a única maneira de realizar mudanças sem destruição da
ordem política é o debate para chegar ao consenso, isto é, a expressão pública
da vontade da maioria, obtida pelo voto.
Por esse motivo, os sofistas se
apresentavam como professores da arte da discussão e da persuasão pela palavra
(retórica). Mediante remuneração, ensinavam os jovens a discutir em público, a
defender e combater opiniões, ensinando-lhes argumentos persuasivos para os prós
e os contras em todas as questões.
A finalidade da política era a
justiça entendida como concórdia,
conseguida na discussão pública de opiniões e interesses contrários. O debate
dos opostos, a exposição persuasiva dos argumentos antagônicos, deviam levar à
vitória do interesse mais bem argumentado, aprovado pelo voto da maioria.
Em oposição aos sofistas, Platão
e Aristóteles afirmam o caráter natural da polis
e da justiça. Embora concordem sob esse aspecto, diferem no modo como concebem
a própria justiça.
Para Platão, os seres humanos e
a polis possuem a mesma estrutura. Os
humanos são dotados de três almas ou três princípios de atividade: a alma
concupiscente ou desejante (situada no ventre), que busca satisfação dos
apetites do corpo, tanto os necessários à sobrevivência, quanto os que,
simplesmente, causam prazer; a alma irascível ou colérica (situada no peito),
que defende o corpo contra as agressões do meio ambiente e de outros humanos,
reagindo à dor na proteção de nossa vida; e a alma racional ou intelectual
(situada na cabeça), que se dedica ao conhecimento, tanto sob a forma de
percepções e opiniões vindas da experiência, quanto sob a forma de ideias
verdadeiras contempladas pelo puro pensamento.
Também a polis possui uma estrutura tripartite, formada por três classes
sociais: a classe econômica dos proprietários de terra, artesãos e
comerciantes, que garante a sobrevivência material da cidade; a classe militar
dos guerreiros, responsável pela defesa da cidade; e a classe dos magistrados,
que garante o governo da cidade sob as leis.
Um homem, diz Platão, é injusto
quando a alma concupiscente (os apetites e prazeres) é mais forte do que as
outras duas, dominando-as. Também é injusto quando a alma irascível (a
agressividade) é mais poderosa do que a racional, dominando-a. O que é, pois, o
homem justo? Aquele cuja alma racional (pensamento e vontade) é mais forte do
que as outras duas almas, impondo à concupiscente a virtude da temperança ou
moderação, e à irascível, a virtude da coragem, que deve controlar a
concupiscência. O homem justo é o homem virtuoso; a virtude, domínio racional
sobre o desejo e a cólera. A justiça ética é a hierarquia das almas, a superior
dominando as inferiores.
O que é a justiça política? Essa
mesma hierarquia, mas aplicada à comunidade. Como realizar a Cidade justa? Pela
educação dos cidadãos – homens e mulheres (Platão não exclui as mulheres da
política e critica os gregos por excluí-las). Desde a primeira infância, a polis deve tomar para si o cuidado total
das crianças, educando-as para as funções necessárias à Cidade.
A educação dos cidadãos submete
as crianças a uma mesma formação inicial em cujo término passam por uma
seleção: as menos aptas serão destinadas à classe econômica, enquanto as mais
aptas prosseguirão os estudos. Uma nova seleção separa os jovens: os menos
aptos serão destinados à classe militar enquanto os mais aptos continuarão a
ser educados. O novo ciclo educacional ensina as ciências aos jovens e os
submete a uma última seleção: os menos aptos serão os administradores da polis enquanto os mais aptos
prosseguirão os estudos. Aprendem, agora, a Filosofia, que os transformará em
sábios legisladores, para que sejam a classe dirigente.
A Cidade justa é governada pelos
filósofos, administrada pelos cientistas, protegida pelos guerreiros e mantida
pelos produtores. Cada classe cumprirá sua função para o bem da polis, racionalmente dirigida pelos
filósofos. Em contrapartida, a Cidade injusta é aquela onde o governo está nas
mãos dos proprietários – que não pensam no bem comum da polis e lutarão por interesses econômicos particulares -, ou na dos
militares – que mergulharão a Cidade em guerras para satisfazer seus desejos
particulares de honra e glória. Somente os filósofos têm como interesse o bem
geral da polis e somente eles podem
governá-la com justiça.
Por seu turno, Aristóteles terá
uma teoria política diversa da dos sofistas e de Platão.
Para determinar o que é a
justiça, diz ele, precisamos distinguir dois tipos de bens: os partilháveis e
os participáveis. Um bem é partilhável quando é uma quantidade que pode ser
dividida e distribuída – a riqueza é um bem partilhável. Um bem é participável
quando é uma qualidade indivisível, que não pode ser dividida nem distribuída,
podendo apenas ser participada – o poder político é um bem participável.
Existem, pois, dois tipos de justiça na Cidade: a distributiva, referente aos
bens econômicos; e a participativa, referente ao poder político. A Cidade justa
saberá distingui-las e realizar ambas.
A justiça distributiva consiste
em dar a cada um o que é devido e sua função é dar desigualmente aos desiguais
para torná-los iguais. Suponhamos, por exemplo, que a polis esteja atravessando um período de fome em decorrência de
secas ou enchentes e que adquira alimentos para distribuí-los a todos. Para ser
justa, a Cidade não poderá reparti-los de modo igual para todos. De fato, aos
que são pobres, deve doá-los, mas aos que são ricos, deve vendê-los, de modo a
conseguir fundos para aquisição de novos alimentos. Se doar a todos ou vender a
todos, será injusta. Também será injusta se atribuir a todos as mesmas
quantidades de alimentos, pois dará quantidades iguais para famílias desiguais,
umas mais numerosas do que outras.
A função ou finalidade da
justiça distributiva sendo a de igualar os desiguais, dando-lhes desigualmente
os bens, implica afirmar que numa cidade onde a diferença entre ricos e pobres
é muito grande vigora a injustiça, pois não dá a todos o que lhes é devido como
seres humanos. Na cidade injusta, em lugar de permitirem aos pobres o acesso às
riquezas (por meio de limitações impostas à extensão da propriedade, de fixação
da boa remuneração do trabalho dos trabalhadores pobres, de impostos e tributos
que recaiam sobre os ricos apenas, etc.), vedam-lhes tal direito. Ora, somente
os que não são forçados às labutas ininterruptas para a sobrevivência são
capazes de uma vida plenamente humana e feliz. A Cidade injusta, portanto,
impede que uma parte dos cidadãos tenha assegurado o direito à vida boa.
A justiça política consiste em
respeitar o modo pelo qual a comunidade definiu a participação no poder. Essa
definição depende daquilo que a Cidade mais valoriza, os regimes políticos
variando em função do valor mais respeitado pelos cidadãos.
Há Cidades que valorizam a honra
(isto é, a hierarquia social baseada no sangue, na terra e nas tradições),
julgando o poder a honra mais alta que cabe a um só: tem-se a monarquia, onde é
justo que um só participe do poder. Há Cidades que valorizam a virtude como
excelência de caráter (coragem, lealdade, fidelidade ao grupo e aos
antepassados), julgando que o poder cabe aos melhores: tem-se a aristocracia,
onde é justo que somente alguns participem do poder. Há Cidades que valorizam a
igualdade (são iguais os que são livres), consideram a diferença entre ricos e
pobres econômica e não política, julgando que todos possuem o direito de
participar do poder: tem-se a democracia, onde é justo que todos governem.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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