Auctoritas e potestas
O vocabulário da política romana distinguia auctoritas e potestas: a
primeira é o poder no sentido pleno, isto é, a autoridade para promulgar as
leis e fazer a justiça; a segunda é o poder de fato para administrar coisas e
pessoas. A primeira é fundadora da comunidade política; a segunda, a atividade
executiva. A vida política cristã, durante toda a Idade Média, viu-se envolvida
no conflito entre esses dois poderes, pois é evidente que um deles está
subordinado ao outro e que a potestas
e inferior à auctoritas.
No início da Idade Média não há conflito. O papa possui a autoridade
espiritual, voltada para a salvação, enquanto os reis possuem a autoridade
legal e a potência administrativa temporais. Pouco a pouco, porém, o conflito
entre as duas autoridades se instala, expressando-se na chamada querela das investiduras.
Padres e bispos são administradores da Igreja no interior dos reinos e do
conjunto formado por eles, o Sacro Império Romano-Germânico. Se são
administradores, devem ser investidos em seus cargos pelo rei e pelo imperador.
Isso significa, porém, que reis e imperadores passam a intervir na autoridade
da Igreja e do papa, o que, para ambos, é inaceitável. Os juristas
eclesiásticos elaboram uma legislação, o direito canônico, para garantir o
poder do papa na investidura de padres e bispos. Essa elaboração, gradualmente,
leva à teoria do poder papal como autoridade suprema à qual deve submeter-se o
imperador.
As teorias teológico-políticas foram elaboradas para resolver dois
conflitos que atravessam toda a Idade Média: o conflito entre o papa e o
imperador, de um lado, e entre o imperador e as assembleias dos barões, de
outro.
O conflito papa-imperador é conseqüência da concepção teocrática do poder.
Se Deus escolhe quem deverá representá-lo, dando o poder ao escolhido, quem é
este: o papa ou o imperador?
A primeira solução encontrada, após a querela das investiduras, foi trazida
pelos juristas de Carlos Magno, com a teoria da dupla investidura: o imperador é investido no poder temporal pelo
papa que o unge e o coroa; o papa recebe do imperador a investidura da espada,
isto é, o imperador jura defender e proteger a Igreja, sob a condição de que
esta nunca interfira nos assuntos administrativos e militares do império.
Assim, o imperador depende do papa para receber o poder político, mas o papa
depende do imperador para manter o poder eclesiástico.
O conflito entre o imperador e as assembleias dos barões e reis diz respeito
à escolha do imperador. Este conflito revela o problema de uma política fundada
em duas fontes antagônicas. De fato, barões e reis invocam a chamada Lei Régia
Romana, segundo a qual o governante recebe do povo o poder, sendo, portanto,
ocupante eleito do poder. Barões e reis afirmam que são os instituidores do imperador. Este, porém, invoca a Bíblia e a origem
teocrática do poder, afirmando que seu poder não vem dos barões e reis, mas de
Deus.
A solução será trazida pela teoria que distingue entre eleição e unção. O
imperador, de fato, é eleito pelos pares para o cargo, mas só terá o poder
através da unção com óleos santos – afirma-se que é ungido com o mesmo óleo que
ungiu Davi e Salomão – e quem unge o imperador é a Igreja, isto é, o papa.
Como se observa, a teoria da dupla investidura e da distinção entre eleição
e unção deixa o imperador à mercê do papa. Para fortalecer o imperador contra o
papa, os reis e os barões, é elaborada uma teoria, que, mais tarde, sustentará
as teorias da monarquia absoluta por direito divino. Trata-se da teologia
política dos dois corpos do rei (isto é, do imperador).
Um rei-pela-graça-de-Deus é a imitação de Jesus Cristo. Jesus possui duas
naturezas: a humana, mortal, e a mística ou divina, imortal. Como Jesus, o rei
tem dois corpos: um corpo humano, que nasce, vive, adoece, envelhece e morre, e
um corpo místico, perene e imortal, seu corpo político. O corpo político do rei
não nasce, nem adoece, envelhece ou morre. Por isso, ninguém, a não ser Deus,
pode lhe dar esse corpo, e ninguém, a não ser Deus, pode tirar-lhe tal corpo.
Não o recebe nem dos barões e reis, nem do papa, e não pode ser-lhe tirado
pelos reis, pelos barões ou pelo papa.
O que é o corpo místico-político do rei? A coroa, o cetro, o manto, a
espada, o trono, as terras, as leis, os impostos e tributos e seus descendentes
ou sua dinastia. Filho da justiça, pai da lei, marido da terra e de tudo o que
nela existe, o rei é inviolável e eterno porque é imitação do Cristo e imagem
de Deus. Nem eleito nem deposto por ninguém, o poder político do rei o coloca
fora e acima da comunidade, tornando-o transcendente a ela.
Em relação ao papa, a teoria dos dois corpos do rei dá ao imperador uma
força teológica semelhante àquela que a doação das Chaves do Reino dava ao Vigário
de Cristo. Em relação aos reis e barões, a teoria dá ao imperador a
inviolabilidade do cargo e, mais do que isso, faz com que seja ele o doador de
poder a seus inferiores. Reis e barões terão poder por um favor do imperador,
assim como este recebe poder por um favor de Deus.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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