Sociedade contra o Estado
Examinamos até aqui duas grandes respostas sociais ao poder: a resposta
despótica e a política. Em ambas, a sociedade procura organizar-se
economicamente – a forma da propriedade -, mantendo e mesmo criando diferenças
sociais profundas entre proprietários e não-proprietários, ricos e pobres,
livres e escravos, homens e mulheres. Essas diferenças engendram lutas
internas, que podem levar à destruição de todos os membros do grupo social.
Para regular os conflitos, determinar limites às lutas, garantir que os
ricos conservem suas riquezas e os pobres aceitem sua pobreza, surge uma chefia
que, como vimos, pode tomar duas direções: ou o chefe se torna senhor das
terras, armas e deuses e transforma sua vontade em lei, ou o poder é exercido
por uma parte da sociedade – os cidadãos -, através de práticas e instituições
públicas fundadas na lei e no direito como expressão da vontade coletiva. Nos
dois casos, surge o Estado como poder separado da sociedade e encarregado de
dirigi-la, comandá-la, arbitrar os conflitos e usar a força. Há, porém, um
terceiro caminho.
Fomos acostumados pela tradição antropológica européia a considerar as
sociedades existentes na América como atrasadas, primitivas e inferiores. Essa
visão nasceu do processo de colonização e conquista, iniciado no século XVI. Os
conquistadores e colonizadores que aportaram na América interpretaram as
diferenças entre eles e os nativos americanos como distinção hierárquica entre
superiores e inferiores: para eles os “índios” não tinham lei, rei, fé,
escrita, moeda, comércio, História; eram seres desprovidos dos traços daquilo
que, para o europeu cristão, súdito de monarquias, constituiria a civilização.
Sem dúvida, os conquistadores encontraram grandes impérios na América:
incas, astecas e maias. Por isso, os destruíram a ferro e fogo, exterminando as
gentes, pilhando as riquezas e erigindo igrejas sobre seus templos. Todavia,
exceto por esses impérios destruídos, os conquistadores encontraram as demais
nações americanas organizadas de maneira incompreensível para os padrões
europeus. Transformaram o que eram incapazes de compreender em inferioridade
dos americanos. Considerando-os selvagens e bárbaros, justificavam a
escravidão, a evangelização e o extermínio.
A visão européia, depois compartilhada pelos brancos americanos, era e é
etnocêntrica, isto é, considera padrões, valores e práticas dos brancos adultos
proprietários europeus como universais e definidores da Cultura e da
civilização. Para o etnocentrismo, portanto, os nativos americanos possuíam e
possuem sociedades carentes: falta-lhes
o mercado (moeda e comércio), a escrita (alfabética), a História e o Estado.
Possuem, portanto, sociedades sem
comércio, sem escrita, sem memória e sem Estado.
O antropólogo francês Pierre Clastres estudou essas sociedades por um
prisma completamente diferente, longe do etnocentrismo costumeiro. Mostrou que
possuem escrita, mas que esta não é alfabética nem ideográfica ou hieroglífica
(isto é, não é a escrita conhecida pelos ocidentais e orientais), mas é
simbólica, gravada nos corpos das pessoas por sinais específicos, inscrita com
sinais específicos em objetos determinados e em espaços determinados. Somos nós
que não sabemos lê-la.
Mostrou também que possuem memória – mitos e narrativas dos povos -,
transmitida oralmente de geração em geração, transformando-se de geração em geração.
Mostrou, pelas mudanças na escrita e na memória, que tais sociedades possuem
História, mas que esta é inseparável da relação dos povos com a Natureza,
diferentemente da nossa História, que narra como nos separamos da Natureza e
como a dominamos. Mas, sobretudo, mostrou por que e como tais sociedades são contra o mercado e contra o Estado. Em outras palavras, não são sociedades sem comércio e sem Estado, mas contrárias
a eles.
As sociedades indígenas estudadas por Clastres são sul-americanas,
encontrando-se num estágio anterior ao das sociedades indígenas da América do
Norte e dos três grandes impérios situados no México, na América Central e no
norte da América do Sul. São, portanto, sociedades que não se organizaram na
forma das chefias norte-americanas nem dos grandes impérios, mas inventaram uma
organização deliberada para evitar
aquelas duas formas de poder.
As sociedades indígenas são tribais ou comunais. Nelas, não há propriedade
privada nem divisão social do trabalho, não havendo, portanto, classes sociais
nem luta de classes. A propriedade é tribal ou comum e o trabalho se divide por
sexo e idade. São comunidades no
sentido pleno do termo, isto é, são internamente homogêneas, unas e indivisas,
possuindo uma História e um destino comuns. São sociedades do cara-a-cara, onde
todos se conhecem pelo nome e são vistos uns pelos outros diariamente.
Por isso mesmo, nelas o poder não se destaca nem se separa, não forma uma
instância acima dela (como na política), nem fora dela (como no despotismo). A
chefia não é um poder de mando a que a comunidade obedece. O chefe não manda; a
comunidade não obedece. A comunidade decide para si mesma, de acordo com suas
tradições e necessidades.
A oposição se estabelece não no interior da comunidade, mas em seu
exterior, isto é, nas relações com as outras comunidades, portanto, no que se
refere à guerra e às alianças de sangue pelo casamento. A função da chefia é
representar a comunidade perante outras comunidades.
O que é e o que faz o chefe, uma vez que não tem a função do poder, pois
este pertence à comunidade e dela não se separa? O chefe possui três funções:
doar presentes, fazer a paz e falar.
Exprimindo a benevolência dos deuses e a prosperidade da comunidade, o
chefe deve, em certos períodos, oferecer presentes a todos os membros da tribo,
isto é, devolver a ela o que ela mesma produziu. A doação de presentes é a
maneira deliberada que a comunidade
inventou para impedir que alguém possa concentrar bens e riquezas, tornar-se
proprietário privado, criar desigualdade econômica e social, de onde surgem a
luta de classes e a necessidade do poder do Estado.
Quando famílias ou indivíduos entram em conflito, o chefe deve intervir.
Não dispõe de códigos legais para arbitrar o conflito em nome da lei. Que faz
ele? A paz. Como a obtém? Apelando para o bom senso das partes, aos bons
sentimentos, à memória da comunidade, à tradição do bom convívio entre as
pessoas. Em suma, através dele a comunidade fala para reafirmar-se como
comunidade indivisa.
Excetuando-se a doação de presentes, a paz entre membros da comunidade, a
diplomacia para tratar com outras comunidades aliadas e o direito a usar a
força, liderando os guerreiros durante a guerra, a grande função da chefia
situa-se na fala ou na Grande Palavra. Todas as tardes, o chefe se dirige a um
local distante da aldeia, mas visível e de onde possa ser ouvido, e ali
discursa. Embora ouvido, ninguém deve dar-lhe atenção e o que ele diz não é
ordem ou comando obrigando à obediência. Que diz ele? Diz a palavra do poder:
canta sua força e coragem, seu prestígio, sua relação com os deuses, seus
grandes feitos. Mas ninguém lhe dá atenção. Ninguém o escuta.
A Grande Palavra tem significado simbólico: a comunidade lembra a si mesma,
diariamente, o risco e o perigo que correria se possuísse um chefe que lhe
desse ordens e ao qual devesse obedecer. A Grande Palavra simboliza a maneira
pela qual a comunidade impede o advento do poder como algo separado dela e que
a comandaria pela coerção da lei e das armas. Com a cerimônia da Grande
Palavra, a sociedade se coloca contra
o surgimento do Estado.
Toda vez que o chefe não realiza as três funções internas e a função
externa tais como a comunidade as define, todas as vezes que pretende usar suas
funções para criar o poder separado, ele é morto pela comunidade.
Evidentemente, nossa tendência será dizer que tal organização é própria de
povos pouco numerosos e de uma vida sócio-econômica muito simples,
parecendo-nos, a nós, membros de sociedades complexas e de classes, uma vaga
lembrança utópica. Pierre Clastres, porém, indaga: Por que outras comunidades,
mundo afora, não foram capazes de impedir o surgimento da propriedade privada,
das divisões sociais de castas e classes, das desigualdades que resultaram na
necessidade de criar o poder separado, seja como poder despótico, seja como
poder político? Por que, afinal, os homens sucumbiram à necessidade de criar o
Estado como poder de coerção social?
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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