O poder despótico
Nas realezas existentes antes
dos gregos, nos territórios que viriam a formar a Grécia – realezas micênicas e
cretenses -, bem como as que existiam nos territórios que viriam a formar Roma
– realezas etruscas -, assim como nos grandes impérios orientais – Pérsia,
Egito, Babilônia, Índia, China – vigorava o poder despótico ou patriarcal.
Em grego, despotes, e, em latim, pater-familias,
o patriarca, é o chefe de família[i]
cuja vontade absoluta é a lei: “Aquilo que apraz ao rei tem força de lei”. O
poder era exercido por um chefe de família ou de famílias (clã, tribo, aldeia),
cuja autoridade era pessoal e arbitrária, decidindo sobre a vida e a morte de
todos os membros do grupo, sobre a posse e a distribuição das riquezas, a
guerra e a paz, as alianças (em geral sob a forma de casamentos), o proibido e
o permitido.
Embora, de fato, a origem desse
poder estivesse na propriedade da terra e dos rebanhos, sendo chefe o detentor
da riqueza, procurava-se garanti-lo contra revoltas e desobediências
afirmando-se uma origem sobrenatural e divina para ele. Aparecendo como
designado pelos deuses e desejado por eles, o detentor do poder também era
detentor do privilégio de relacionar-se diretamente com o divino ou com o
sagrado, concentrando em suas mãos a autoridade religiosa.
Por sua riqueza, autoridade
religiosa e posse de armas, o detentor do poder era também chefe militar,
concentrando em suas mãos a chefia dos exércitos e a decisão sobre a guerra e a
paz. Era comandante.
O chefe era um senhor, enfeixando em suas mãos a
propriedade do solo e tudo quanto nele houvesse (portanto, a riqueza do grupo),
a autoridade religiosa e militar, sendo, por isso, rei, sacerdote e capitão.
Com o crescimento demográfico
(através das alianças pelos casamentos entre famílias régias), a expansão
territorial (através das guerras de conquista), a divisão social do trabalho
(através da escravização dos vencidos de guerra e das funções domésticas das
mulheres) e os acordos militares e navais entre grupos, a autoridade, embora
concentrada nas mãos do rei, passa a ser delegada por ele a seus representantes
(em geral, membros de sua família e das famílias aliadas).
Surge, assim, uma repartição das
funções de direção ou de poder: a casta sacerdotal detém a autoridade religiosa
e a dos guerreiros, a militar. Senhores das terras, dos escravos, das mulheres,
das armas e dos deuses, os grupos detentores da autoridade formavam a classe
dominante economicamente e dirigente da comunidade, sob o poder do rei, ao qual
prestavam juramento de lealdade e pagavam tributo pelo usufruto das terras
pertencentes a ele e por ele cedidas aos demais.
A propriedade da terra e de seus
produtos existia sob duas formas principais:
1. como propriedade privada do
rei e, portanto, como domínio pessoal do chefe ou patriarca. Esse patrimônio ou
propriedade patrimonial era cedido, segundo a vontade arbitrária do rei, aos
chefes de clãs e tribos, aos grupos sacerdotais e militares, mediante serviços
e/ou tributos. Em geral, esse tipo de propriedade prevalecia naquelas regiões
em que o cultivo da terra exigia trabalhos imensos de irrigação e de transporte
de água, que um proprietário isolado não poderia realizar, não só por lhe
faltarem recursos para isso como também porque teria que atravessar terras de
outros proprietários, devendo pagar-lhes tributos ou fazer-lhes guerra. A
propriedade, ficando na posse do rei, permitia que este usasse os recursos
vindos dos tributos para as grandes obras de irrigação e transporte de águas,
ao mesmo tempo em que possuía o poder para atravessar toda e qualquer terra para
realizar as obras;
2. como propriedade coletiva das
aldeias ou propriedade comunal do chefe da aldeia, que pagava tributos ao rei
em troca de proteção, submetendo-se ao poder régio e, portanto, à autoridade
religiosa e militar do senhor.
Seja num caso como noutro, o rei
era forçado a exercer um controle cerrado sobre as chefias locais e sobre os
que usufruíam as terras, pois as rebeliões eram freqüentes e a disputa pelo
poder interminável. Tal controle era feito por representantes do rei, quando
percorriam as terras registrando a produção e recolhendo tributos, punindo
crimes cometidos contra as decisões e decretos régios, sufocando revoltas e
impedindo o surgimento de federações e confederações de aldeias.
Com isso, o rei passou a ter uma
imensa burocracia e imensos exércitos, custeados pelos chefes locais e suas
aldeias. Os funcionários régios precisavam saber ler, escrever e contar. Nas
sociedades de que falamos, tais conhecimentos eram privilégio de um grupo, os
sacerdotes. Por esse motivo, a ênfase no caráter sagrado ou religioso do poder
tendia a aumentar à medida que aumentava o poderio sacerdotal, sustentáculo
indispensável do poder régio. Deuses e armas eram os pilares da autoridade.
Assim constituído, o poder
possuía as seguintes características:
● despótico ou patriarcal: era exercido pelo chefe de
família sobre um conjunto de famílias a ele ligadas por laços de dependência
econômica e militar, por alianças matrimoniais, numa relação pessoal em que o
chefe garantia proteção e os súditos ofereciam lealdade e obediência, jurando
cumprir a vontade do primeiro;
● total: o detentor da
autoridade possuía poder supremo inquestionável para decidir quanto ao
permitido e ao proibido (a lei exprime a vontade pessoal do chefe), para
estabelecer os vínculos com o sagrado, isto é, com os deuses e antepassados (o
chefe detém o poder religioso), para decidir quanto à guerra e à paz (o chefe
detém o poder militar). A tomada de decisão cabia exclusivamente ao rei. Este
possuía conselheiros (sacerdotes e militares), que o informavam e lhe sugeriam
condutas e ações, mas a decisão cabia apenas a ele. O conselho era secreto, os
motivos de uma decisão eram secretos, o que se passava entre o rei e seus
conselheiros era secreto. Somente a decisão tornava-se pública, sob a forma de
um decreto real;
● incorporado ou corporificado: o detentor do poder
figurava em seu próprio corpo as características do poder, apresentando-se como
manifestação da própria comunidade. Sua cabeça encarnava a autoridade que
dirige, seu peito encarnava a vontade que ordena, seus membros superiores
encarnavam os delegados que o representavam (sacerdotes e militares), seus
membros inferiores encarnavam os súditos que o obedeciam. Essa figuração do
poder no corpo do próprio rei indicava a existência de uma organização social fortemente
hierarquizada, na qual cada indivíduo possuía um lugar fixo e predeterminado,
só tendo existência social graças a esse lugar. O corpo do rei permitia não só
figurar a hierarquia, mas também a forte centralização da autoridade,
concentrada na cabeça e no peito do dirigente;
● mágico: por receber a
autoridade dos deuses, o detentor do poder possuía força sobrenatural ou
mágica. Sua palavra era um comando misterioso que fazia existir aquilo que era
dito (o rei dizia “faça-se” e as coisas aconteciam simplesmente porque ele as
havia dito e desejado); seus gestos e desejos tinham força para matar e curar,
sua maldição destruía tudo quanto fosse amaldiçoado por ele, dele dependiam a
fertilidade da terra, a vitória ou a derrota na guerra, o início ou o fim de
uma peste, fenômenos meteorológicos, cataclismos;
● transcendente: por ser de
origem divina, o rei era divinizado e acreditava-se em sua imortalidade como
condição da preservação da comunidade. Essa divinização o colocava acima e fora
da comunidade. Tal separação levava a considerar que o dirigente ocupava um
lugar transcendente, graças ao qual via tudo, sabia tudo e podia tudo, tendo o
império total sobre a comunidade;
● hereditário: era transmitido
ao primogênito do rei ou, na falta deste, a um membro da família real. A
família reinante constituía uma linhagem e uma dinastia, que só findava ou por
falta de herdeiros diretos ou por usurpação do poder por uma outra família, que
dava início a uma nova linhagem ou dinastia.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
[i]
Na Antiguidade, família não era o que é hoje para nós (pai, mãe e filhos), mas
era uma unidade econômica constituída pelos antepassados e descendentes, pai,
mãe, filhos, genros, noras, tios e sobrinhos, escravos, animais, terras,
edificações, plantações, bens móveis e imóveis – pessoas e coisas eram
propriedades do patriarca (despotes
ou pater-familias).
0 Response to "O poder despótico"
Postar um comentário