"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Paradoxos da política


Não é raro ouvirmos dizer que “lugar de estudante é na sala de aula e não na rua, fazendo passeata” ou “estudante estuda, não faz política”. Mas também ouvimos o contrário, quando alguém diz que “os estudantes estão alienados, não se interessam por política”. No primeiro caso, considera-se a política uma atividade própria de certas pessoas encarregadas de fazê-la – os políticos profissionais -, enquanto no segundo caso, considera-se a política um interesse e mesmo uma obrigação de todos. Assim, um primeiro paradoxo da política faz aqui sua aparição: é ela uma atividade específica de alguns profissionais da sociedade ou concerne a todos nós, porque vivemos em sociedade?
Como se observa, usamos a palavra política ora para significar uma atividade específica – o governo -, realizada por um certo tipo de profissional – o político -, ora para significar uma ação coletiva – o movimento estudantil nas ruas – de reivindicação de alguma coisa, feita por membros da sociedade e dirigida aos governos ou ao Estado. Afinal, a política é uma profissão entre outras ou é uma ação que todos os indivíduos realizam quando se relacionam com o poder? A política se refere às atividades de governo ou a toda ação social que tenha como alvo ou como interlocutor o governo ou o Estado?
No entanto, podemos usar a palavra política ainda noutro sentido.  

De fato, freqüentemente, encontramos expressões como “política universitária”, “política da escola”, “política do hospital”, “política da empresa”, “política sindical”. Nesse conjunto de expressões, já não encontramos a referência ao governo nem a profissionais da política. “Política universitária” e “política da escola” referem-se à maneira como uma instituição de ensino (pública ou privada) define sua direção e o modo de participação ou não de professores e estudantes em sua gestão, ao modo como os recursos serão empregados, ao currículo, às formas de avaliação dos alunos e professores, ao tipo de pessoa que será recebida como estudante ou como docente, à carreira dos docentes, aos salários, e, se a instituição for privada, ao custo das mensalidades e matrículas, etc.
Em sentido próximo a esse fala-se de “política do hospital”. Já “política da empresa” refere-se ao modo de organização e divisão de poderes relativos aos investimentos e aos lucros de uma empresa, à distribuição dos serviços, à divisão do trabalho, às decisões sobre a produção e a distribuição dos produtos, às relações com as outras empresas, etc. “Política do sindicato” refere-se à maneira de preencher os cargos de direção sindical, às formas de representação e participação dos sindicalizados na direção do sindicato, aos conteúdos e às formas das reivindicações e lutas dos sindicalizados em face de outros poderes, etc.
Podemos, então, indagar: Afinal, o que é a política? É a atividade de governo? É a administração do que é público? É profissão de alguns especialistas? É ação coletiva referida aos governos? Ou é tudo que se refira à organização e à gestão de uma instituição pública ou privada? No primeiro caso (governo e administração), usamos “política” para nos referirmos a uma atividade que exige formas organizadas de gestão institucional e, no segundo caso (gestão e organização de instituições), usamos “política” para nos referirmos ao fato de que organizar e gerir uma instituição envolve questões de poder. Em resumo: Política diz respeito a tudo quanto envolva relações de poder ou a tudo quanto envolva organização e administração de grupos?
Como veremos posteriormente, o crescimento das atribuições conferidas aos governos, sob a forma do Estado, levou a uma ampliação do campo das atividades políticas, que passaram a abranger questões administrativas e organizacionais, decisões econômicas e serviços sociais. Essa ampliação acabou levando a um uso generalizado da palavra política para referir-se a toda modalidade de direção de grupos sociais que envolva poder, administração e organização.
Podemos, assim, distinguir entre o uso generalizado e vago da palavra política e um outro, mais específico e preciso, que fazemos quando damos a ela três significados principais inter-relacionados:
1. o significado de governo, entendido como direção e administração do poder público, sob a forma do Estado. O senso comum social tende a identificar governo e Estado, mas governo e Estado são diferentes, pois o primeiro diz respeito a programas e projetos que uma parte da sociedade propõe para o todo que a compõe, enquanto o segundo é formado por um conjunto de instituições permanentes que permitem a ação dos governos.
Ao Estado confere-se autoridade para gerir o erário ou fundo público por meio de impostos, taxas e tributos, para promulgar e aplicar as leis que definem os costumes públicos lícitos, os crimes, bem como os direitos e as obrigações dos membros da sociedade. Também se reconhece como autoridade do governo ou do Estado o poder para usar a força (polícia e exército) contra aqueles que forem considerados inimigos da sociedade (criminosos comuns e criminosos políticos). Confere-se igualmente ao governo ou ao Estado o poder para decretar a guerra e a paz. Exige-se dos membros da sociedade obediência ao governo ou ao Estado, mas reconhece-se o direito de resistência e de desobediência quando a sociedade julga o governo ou mesmo o Estado injusto, ilegal ou ilegítimo.
A política, neste primeiro sentido, refere-se, portanto, à ação dos governantes que detêm a autoridade para dirigir a coletividade organizada em Estado, bem como às ações da coletividade em apoio ou contrárias à autoridade governamental e mesmo à forma do Estado;
2. o significado de atividade realizada por especialistas – os administradores – e profissionais – os políticos -, pertencentes a um certo tipo de organização sociopolítica – os partidos -, que disputam o direito de governar, ocupando cargos e postos no Estado. Neste segundo sentido, a política aparece como algo distante da sociedade, uma vez que é atividade de especialistas e profissionais que se ocupam exclusivamente com o Estado e o poder. A política é feita “por eles” e não “por nós”, ainda que “eles” se apresentem como representantes “nossos”;
3. o significado, derivado do segundo sentido, de conduta duvidosa, não muito confiável, um tanto secreta, cheia de interesses particulares dissimulados e freqüentemente contrários aos interesses gerais da sociedade e obtidos por meios ilícitos ou ilegítimos. Este terceiro significado é o mais corrente para o senso comum social e resulta numa visão pejorativa da política. Esta aparece como um poder distante de nós (passa-se no governo ou no Estado), exercido por pessoas diferentes de nós (os administradores e profissionais da política), através de práticas secretas que beneficiam quem as exerce e prejudicam o restante da sociedade. Fala-se na política como “mal necessário”, que precisamos tolerar e do qual precisamos desconfiar. A desconfiança pode referir-se tanto aos atuais ocupantes dos postos e cargos políticos, quanto a grupos e organizações que lhes fazem oposição e pretendem derrubá-los, seja para ocupar os mesmos postos e cargos, seja para criar um outro Estado, através de uma revolução sócio-econômica e política.
Onde está o paradoxo? Na divergência entre o primeiro e o terceiro sentido da palavra política, pois o primeiro se refere a algo geral, que concerne à sociedade como um todo, definindo leis e costumes, garantindo direitos e obrigações, criando espaço para contestações através da reivindicação, da resistência e da desobediência, enquanto o terceiro sentido afasta a política de nosso alcance, fazendo-a surgir como algo perverso e maléfico para a sociedade. A divergência entre o primeiro e o terceiro é provocada pelo segundo significado, isto é, aquele que reduz a política à ação de especialistas e profissionais.
Essa situação paradoxal da política acaba por fazer-nos aceitar como óbvias e verdadeiras certas atitudes e afirmações que, se examinadas mais a fundo, seriam percebidas como absurdas.
Tomemos um exemplo recente da história da política do País. Em 1993, durante o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do pedido do ex-presidente da república, Fernando Collor de Mello, de não-suspensão de seus direitos políticos, ouvimos, em toda a parte, a afirmação de que o Poder Judiciário (do qual o Supremo Tribunal Federal é o órgão mais alto) só teria sua dignidade preservada se o julgamento do pedido não fosse um “julgamento político”.
Onde está o paradoxo? No fato de que a república brasileira é constituída por três poderes políticos – executivo, legislativo, judiciário -, e, portanto, o Supremo Tribunal Federal, sendo um poder político da República (um poder do Estado), não pode ficar fora da política. Que sentido, portanto, poderia ter a idéia de que o órgão mais alto do Poder Judiciário não deve julgar politicamente? Como desejar que um poder do Estado, portanto, um poder político, aja fora da política?
Mais paradoxal, ainda, foi o modo como os juízes, após o julgamento, avaliaram seu próprio trabalho, dizendo: “Foi um julgamento legal e não político”. Ora (e nisso reside o paradoxo), a lei não é feita pelo Poder Legislativo? Não é parte da Constituição da República? Não é parte essencial da política? Como, então, separar o legal e o político, se a lei é uma das formas fundamentais da ação política?
Na verdade, quando se insistia em que o julgamento “não fosse político” e se elogiava o julgamento por “ter sido apenas legal”, o que estava sendo pressuposto por todos (sociedade e juízes) era a identificação costumeira entre política e interesses particulares escusos, contrários aos da maioria, que por isso deve ser protegida pela lei contra a política. O paradoxo está no fato de que uma forma essencial da política – a lei – aparece como proteção contra a própria política.
Uma outra afirmação que aceitamos tranquilamente é aquele que acusa e critica uma greve, declarando que se trata de “greve política”. É curioso que usemos, sem problema, a expressão “política sindical” e, ao mesmo tempo, a condenemos, criticando uma greve sob a alegação de ser “política”.
Em certos casos, é compreensível o paradoxo. Quando, por exemplo, se trata de trabalhadores de uma fábrica de automóveis que, em nome de melhores salários, entram em greve contra a direção da empresa, compreende-se que a greve seja considerada “simplesmente econômica”. Ao criticá-la como “greve política” está-se, como sempre, querendo dizer que os grevistas, sob a aparência de uma reivindicação salarial, estariam defendendo interesses particulares escusos e ilegítimos, ou buscando, dissimuladamente, vantagens e poderes para alguns sindicalistas. A palavra política é, assim, empregada para dar um sentido pejorativo à greve.
Há casos, porém, em que a expressão “greve política”, usada como crítica ou acusação, é surpreendente. Suponhamos, por exemplo, que os trabalhadores de um país façam uma greve geral contra o plano econômico do governo. Estão, portanto, recusando uma política econômica e, nesse caso, a greve é e só pode ser política. Por que, então, acusar uma greve por ela ser o que ela é? O motivo é simples: para o senso comum social, dizer de alguma coisa que ela é “política” é fazer uma acusação. A crítica só em aparência está dirigida contra a greve, pois, realmente, está voltada contra a política, imaginada como algo maléfico.
Essa visão generalizada da política como algo perverso, perigoso, distante de nós (passa-se no Estado), praticado por “eles” (os políticos profissionais) contra “nós”, sob o disfarce de agirem “por nós”, faz com que seja sentida como algo secreto e desconhecido, uma conduta calculista e oportunista, uma força corrupta e, através da polícia, uma força repressora usada contra a sociedade. Essa imagem da política como um poder do qual somos vítimas tolerantes, que consentem a violência, é paradoxal pelo menos por dois motivos principais.
Em primeiro lugar, porque a política foi inventada pelos humanos como o modo pelo qual pudessem expressar suas diferenças e conflitos sem transformá-los em guerra total, em uso da força e extermínio recíproco. Numa palavra, como o modo pelo qual os humanos regulam e ordenam seus interesses conflitantes, seus direitos e obrigações enquanto seres sociais. Como explicar, então, que a política seja percebida como distante, maléfica e violenta?
Em segundo lugar, porque a política foi inventada como o modo pelo qual a sociedade, internamente dividida, discute, delibera e decide em comum para aprovar ou rejeitar as ações que dizem respeito a todos os seus membros. Como explicar, então, que seja percebida como algo que não nos concerne, mas nos prejudica, não nos favorece, mas favorece aos interesses escusos e ilícitos de outros?
Que aconteceu a essa invenção humana para tornar-se, paradoxalmente, um fardo de que gostaríamos de nos livrar?
Cotidianamente, jornais, rádios, televisões mostram, no mundo inteiro, fatos políticos que reforçam a visão pejorativa da política: corrupção, fraudes, crimes impunes praticados por políticos, mentiras provocando guerras para satisfazer aos interesses econômicos dos fabricantes de armamentos, desvios de recursos públicos que deveriam ser usados contra a fome, as doenças, a pobreza, aumento das desigualdades econômicas e sociais, uso das leis com finalidades opostas aos objetivos que tiveram ao ser elaboradas, etc.
Ao lado desses fatos, não passa um dia sem que saibamos o modo desumano, autoritário, violento com que funcionários públicos, cujo salário é pago por nós (através de impostos), tratam a população que busca os serviços públicos. Também contribui para a visão negativa da política a maneira como as leis estão redigidas, tornando-se incompreensíveis para a sociedade e exigindo que sejam interpretadas por especialistas, sem que tenhamos garantia de que as interpretam corretamente, se o fazem em nosso favor ou em favor de privilégios escondidos.
O que é curioso, porém, aumentando nossa percepção da política como algo paradoxal, é o fato de que só podemos opor-nos a tais fatos e lutar contra eles através da própria política, pois mesmo quando se faz uma guerra civil ou se realiza uma revolução, os motivos e objetivos são a política, isto é, mudanças na forma e no conteúdo do poder. Mesmo as utopias de emancipação do gênero humano contra todas as modalidades de servidão, escravidão, autoritarismo, violência e injustiça concebem o término de poderes ilegítimos, mas não o término da própria política.
As pessoas que, desgostosas e decepcionadas, não querem ouvir falar em política, recusam-se a participar de atividades sociais que possam ter finalidade ou cunho políticos, afastam-se de tudo quanto lembre atividades políticas, mesmo tais pessoas, com seu isolamento e sua recusa, estão fazendo política, pois estão deixando que as coisas fiquem como estão e, portanto, que a política existente continue tal qual é. A apatia social é, pois, uma forma passiva de fazer política.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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