Paradoxos da política
Não é raro ouvirmos dizer que
“lugar de estudante é na sala de aula e não na rua, fazendo passeata” ou
“estudante estuda, não faz política”. Mas também ouvimos o contrário, quando
alguém diz que “os estudantes estão alienados, não se interessam por política”.
No primeiro caso, considera-se a política uma atividade própria de certas
pessoas encarregadas de fazê-la – os políticos profissionais -, enquanto no
segundo caso, considera-se a política um interesse e mesmo uma obrigação de
todos. Assim, um primeiro paradoxo da política faz aqui sua aparição: é ela uma
atividade específica de alguns profissionais da sociedade ou concerne a todos
nós, porque vivemos em sociedade?
Como se observa, usamos a
palavra política ora para significar
uma atividade específica – o governo -, realizada por um certo tipo de
profissional – o político -, ora para significar uma ação coletiva – o
movimento estudantil nas ruas – de reivindicação de alguma coisa, feita por
membros da sociedade e dirigida aos governos ou ao Estado. Afinal, a política é
uma profissão entre outras ou é uma ação que todos os indivíduos realizam
quando se relacionam com o poder? A política se refere às atividades de governo
ou a toda ação social que tenha como alvo ou como interlocutor o governo ou o
Estado?
No entanto, podemos usar a
palavra política ainda noutro
sentido.
De fato, freqüentemente,
encontramos expressões como “política universitária”, “política da escola”,
“política do hospital”, “política da empresa”, “política sindical”. Nesse
conjunto de expressões, já não encontramos a referência ao governo nem a
profissionais da política. “Política universitária” e “política da escola”
referem-se à maneira como uma instituição de ensino (pública ou privada) define
sua direção e o modo de participação ou não de professores e estudantes em sua
gestão, ao modo como os recursos serão empregados, ao currículo, às formas de
avaliação dos alunos e professores, ao tipo de pessoa que será recebida como
estudante ou como docente, à carreira dos docentes, aos salários, e, se a
instituição for privada, ao custo das mensalidades e matrículas, etc.
Em sentido próximo a esse
fala-se de “política do hospital”. Já “política da empresa” refere-se ao modo
de organização e divisão de poderes relativos aos investimentos e aos lucros de
uma empresa, à distribuição dos serviços, à divisão do trabalho, às decisões
sobre a produção e a distribuição dos produtos, às relações com as outras
empresas, etc. “Política do sindicato” refere-se à maneira de preencher os
cargos de direção sindical, às formas de representação e participação dos
sindicalizados na direção do sindicato, aos conteúdos e às formas das
reivindicações e lutas dos sindicalizados em face de outros poderes, etc.
Podemos, então, indagar: Afinal,
o que é a política? É a atividade de governo? É a administração do que é
público? É profissão de alguns especialistas? É ação coletiva referida aos
governos? Ou é tudo que se refira à organização e à gestão de uma instituição
pública ou privada? No primeiro caso (governo e administração), usamos
“política” para nos referirmos a uma atividade que exige formas organizadas de
gestão institucional e, no segundo caso (gestão e organização de instituições),
usamos “política” para nos referirmos ao fato de que organizar e gerir uma
instituição envolve questões de poder. Em resumo: Política diz respeito a tudo
quanto envolva relações de poder ou a tudo quanto envolva organização e
administração de grupos?
Como veremos posteriormente, o
crescimento das atribuições conferidas aos governos, sob a forma do Estado,
levou a uma ampliação do campo das atividades políticas, que passaram a
abranger questões administrativas e organizacionais, decisões econômicas e
serviços sociais. Essa ampliação acabou levando a um uso generalizado da
palavra política para referir-se a
toda modalidade de direção de grupos sociais que envolva poder, administração e
organização.
Podemos, assim, distinguir entre
o uso generalizado e vago da palavra política
e um outro, mais específico e preciso, que fazemos quando damos a ela três
significados principais inter-relacionados:
1. o significado de governo,
entendido como direção e administração do poder público, sob a forma do Estado.
O senso comum social tende a identificar governo e Estado, mas governo e Estado
são diferentes, pois o primeiro diz respeito a programas e projetos que uma
parte da sociedade propõe para o todo que a compõe, enquanto o segundo é
formado por um conjunto de instituições permanentes que permitem a ação dos
governos.
Ao Estado confere-se autoridade
para gerir o erário ou fundo público por meio de impostos, taxas e tributos,
para promulgar e aplicar as leis que definem os costumes públicos lícitos, os
crimes, bem como os direitos e as obrigações dos membros da sociedade. Também
se reconhece como autoridade do governo ou do Estado o poder para usar a força
(polícia e exército) contra aqueles que forem considerados inimigos da
sociedade (criminosos comuns e criminosos políticos). Confere-se igualmente ao
governo ou ao Estado o poder para decretar a guerra e a paz. Exige-se dos
membros da sociedade obediência ao governo ou ao Estado, mas reconhece-se o
direito de resistência e de desobediência quando a sociedade julga o governo ou
mesmo o Estado injusto, ilegal ou ilegítimo.
A política, neste primeiro
sentido, refere-se, portanto, à ação dos governantes que detêm a autoridade
para dirigir a coletividade organizada em Estado, bem como às ações da
coletividade em apoio ou contrárias à autoridade governamental e mesmo à forma
do Estado;
2. o significado de atividade
realizada por especialistas – os administradores – e profissionais – os
políticos -, pertencentes a um certo tipo de organização sociopolítica – os
partidos -, que disputam o direito de governar, ocupando cargos e postos no
Estado. Neste segundo sentido, a política aparece como algo distante da
sociedade, uma vez que é atividade de especialistas e profissionais que se
ocupam exclusivamente com o Estado e o poder. A política é feita “por eles” e
não “por nós”, ainda que “eles” se apresentem como representantes “nossos”;
3. o significado, derivado do
segundo sentido, de conduta duvidosa, não muito confiável, um tanto secreta,
cheia de interesses particulares dissimulados e freqüentemente contrários aos
interesses gerais da sociedade e obtidos por meios ilícitos ou ilegítimos. Este
terceiro significado é o mais corrente para o senso comum social e resulta numa
visão pejorativa da política. Esta aparece como um poder distante de nós
(passa-se no governo ou no Estado), exercido por pessoas diferentes de nós (os
administradores e profissionais da política), através de práticas secretas que
beneficiam quem as exerce e prejudicam o restante da sociedade. Fala-se na
política como “mal necessário”, que precisamos tolerar e do qual precisamos
desconfiar. A desconfiança pode referir-se tanto aos atuais ocupantes dos
postos e cargos políticos, quanto a grupos e organizações que lhes fazem
oposição e pretendem derrubá-los, seja para ocupar os mesmos postos e cargos,
seja para criar um outro Estado, através de uma revolução sócio-econômica e
política.
Onde está o paradoxo? Na
divergência entre o primeiro e o terceiro sentido da palavra política, pois o primeiro se refere a
algo geral, que concerne à sociedade como um todo, definindo leis e costumes,
garantindo direitos e obrigações, criando espaço para contestações através da
reivindicação, da resistência e da desobediência, enquanto o terceiro sentido
afasta a política de nosso alcance, fazendo-a surgir como algo perverso e
maléfico para a sociedade. A divergência entre o primeiro e o terceiro é
provocada pelo segundo significado, isto é, aquele que reduz a política à ação
de especialistas e profissionais.
Essa situação paradoxal da
política acaba por fazer-nos aceitar como óbvias e verdadeiras certas atitudes
e afirmações que, se examinadas mais a fundo, seriam percebidas como absurdas.
Tomemos um exemplo recente da
história da política do País. Em 1993, durante o julgamento, pelo Supremo
Tribunal Federal (STF), do pedido do ex-presidente da república, Fernando
Collor de Mello, de não-suspensão de seus direitos políticos, ouvimos, em toda
a parte, a afirmação de que o Poder Judiciário (do qual o Supremo Tribunal
Federal é o órgão mais alto) só teria sua dignidade preservada se o julgamento
do pedido não fosse um “julgamento político”.
Onde está o paradoxo? No fato de
que a república brasileira é constituída por três poderes políticos –
executivo, legislativo, judiciário -, e, portanto, o Supremo Tribunal Federal,
sendo um poder político da República (um poder do Estado), não pode ficar fora
da política. Que sentido, portanto, poderia ter a idéia de que o órgão mais
alto do Poder Judiciário não deve julgar politicamente? Como desejar que um
poder do Estado, portanto, um poder político, aja fora da política?
Mais paradoxal, ainda, foi o
modo como os juízes, após o julgamento, avaliaram seu próprio trabalho,
dizendo: “Foi um julgamento legal e não político”. Ora (e nisso reside o
paradoxo), a lei não é feita pelo Poder Legislativo? Não é parte da
Constituição da República? Não é parte essencial da política? Como, então,
separar o legal e o político, se a lei é uma das formas fundamentais da ação
política?
Na verdade, quando se insistia
em que o julgamento “não fosse político” e se elogiava o julgamento por “ter
sido apenas legal”, o que estava sendo pressuposto por todos (sociedade e
juízes) era a identificação costumeira entre política e interesses particulares
escusos, contrários aos da maioria, que por isso deve ser protegida pela lei
contra a política. O paradoxo está no fato de que uma forma essencial da
política – a lei – aparece como proteção contra a própria política.
Uma outra afirmação que
aceitamos tranquilamente é aquele que acusa e critica uma greve, declarando que
se trata de “greve política”. É curioso que usemos, sem problema, a expressão
“política sindical” e, ao mesmo tempo, a condenemos, criticando uma greve sob a
alegação de ser “política”.
Em certos casos, é compreensível
o paradoxo. Quando, por exemplo, se trata de trabalhadores de uma fábrica de
automóveis que, em nome de melhores salários, entram em greve contra a direção
da empresa, compreende-se que a greve seja considerada “simplesmente
econômica”. Ao criticá-la como “greve política” está-se, como sempre, querendo
dizer que os grevistas, sob a aparência de uma reivindicação salarial, estariam
defendendo interesses particulares escusos e ilegítimos, ou buscando,
dissimuladamente, vantagens e poderes para alguns sindicalistas. A palavra política é, assim, empregada para dar um
sentido pejorativo à greve.
Há casos, porém, em que a
expressão “greve política”, usada como crítica ou acusação, é surpreendente.
Suponhamos, por exemplo, que os trabalhadores de um país façam uma greve geral
contra o plano econômico do governo. Estão, portanto, recusando uma política econômica e, nesse caso, a
greve é e só pode ser política. Por que, então, acusar uma greve por ela ser o
que ela é? O motivo é simples: para o senso comum social, dizer de alguma coisa
que ela é “política” é fazer uma acusação. A crítica só em aparência está
dirigida contra a greve, pois, realmente, está voltada contra a política,
imaginada como algo maléfico.
Essa visão generalizada da
política como algo perverso, perigoso, distante de nós (passa-se no Estado),
praticado por “eles” (os políticos profissionais) contra “nós”, sob o disfarce
de agirem “por nós”, faz com que seja sentida como algo secreto e desconhecido,
uma conduta calculista e oportunista, uma força corrupta e, através da polícia,
uma força repressora usada contra a sociedade. Essa imagem da política como um
poder do qual somos vítimas tolerantes, que consentem a violência, é paradoxal
pelo menos por dois motivos principais.
Em primeiro lugar, porque a
política foi inventada pelos humanos como o modo pelo qual pudessem expressar
suas diferenças e conflitos sem transformá-los em guerra total, em uso da força
e extermínio recíproco. Numa palavra, como o modo pelo qual os humanos regulam
e ordenam seus interesses conflitantes, seus direitos e obrigações enquanto
seres sociais. Como explicar, então, que a política seja percebida como distante,
maléfica e violenta?
Em segundo lugar, porque a
política foi inventada como o modo pelo qual a sociedade, internamente
dividida, discute, delibera e decide em comum para aprovar ou rejeitar as ações
que dizem respeito a todos os seus membros. Como explicar, então, que seja
percebida como algo que não nos concerne, mas nos prejudica, não nos favorece,
mas favorece aos interesses escusos e ilícitos de outros?
Que aconteceu a essa invenção
humana para tornar-se, paradoxalmente, um fardo de que gostaríamos de nos
livrar?
Cotidianamente, jornais, rádios,
televisões mostram, no mundo inteiro, fatos políticos que reforçam a visão
pejorativa da política: corrupção, fraudes, crimes impunes praticados por
políticos, mentiras provocando guerras para satisfazer aos interesses
econômicos dos fabricantes de armamentos, desvios de recursos públicos que
deveriam ser usados contra a fome, as doenças, a pobreza, aumento das
desigualdades econômicas e sociais, uso das leis com finalidades opostas aos
objetivos que tiveram ao ser elaboradas, etc.
Ao lado desses fatos, não passa
um dia sem que saibamos o modo desumano, autoritário, violento com que
funcionários públicos, cujo salário é pago por nós (através de impostos),
tratam a população que busca os serviços públicos. Também contribui para a
visão negativa da política a maneira como as leis estão redigidas, tornando-se
incompreensíveis para a sociedade e exigindo que sejam interpretadas por
especialistas, sem que tenhamos garantia de que as interpretam corretamente, se
o fazem em nosso favor ou em favor de privilégios escondidos.
O que é curioso, porém,
aumentando nossa percepção da política como algo paradoxal, é o fato de que só
podemos opor-nos a tais fatos e lutar contra eles através da própria política,
pois mesmo quando se faz uma guerra civil ou se realiza uma revolução, os
motivos e objetivos são a política, isto é, mudanças na forma e no conteúdo do
poder. Mesmo as utopias de emancipação do gênero humano contra todas as
modalidades de servidão, escravidão, autoritarismo, violência e injustiça
concebem o término de poderes ilegítimos, mas não o término da própria
política.
As pessoas que, desgostosas e
decepcionadas, não querem ouvir falar em política, recusam-se a participar de
atividades sociais que possam ter finalidade ou cunho políticos, afastam-se de
tudo quanto lembre atividades políticas, mesmo tais pessoas, com seu isolamento
e sua recusa, estão fazendo política, pois estão deixando que as coisas fiquem
como estão e, portanto, que a política existente continue tal qual é. A apatia
social é, pois, uma forma passiva de fazer política.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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