Em busca de uma definição da Filosofia
Quando começamos a estudar Filosofia, somos logo levados a
buscar o que ela é. Nossa primeira surpresa surge ao descobrirmos que não há
apenas uma definição da Filosofia, mas várias. A segunda surpresa vem ao
percebermos que, além de várias, as definições parecem contradizer-se. Eis
porque muitos, cheios de perplexidade, indagam: afinal, o que é a Filosofia que
sequer consegue dizer o que ela é?
Uma primeira aproximação nos mostra pelo menos quatro
definições gerais do que seria a Filosofia:
1. Visão de mundo de um povo, de uma civilização ou
de uma cultura. Filosofia corresponde, de modo vago e geral, ao conjunto de idéias,
valores e práticas pelos quais uma sociedade apreende e compreende o mundo e a
si mesma, definindo para si o tempo e o espaço, o sagrado e o profano, o bom e
o mau, o justo e o injusto, o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, o possível
e o impossível, o contingente e o necessário.
Qual o problema dessa definição? Ela é tão genérica e tão
ampla que não permite, por exemplo, distinguir a Filosofia e religião,
Filosofia e arte, Filosofia e ciência. Na verdade, essa definição identifica
Filosofia e Cultura, pois esta é uma visão de mundo coletiva que se exprime em
idéias, valores e práticas de uma sociedade.
A definição, portanto, não consegue acercar-se da
especificidade do trabalho filosófico e por isso não podemos aceitá-la.
2. Sabedoria de vida. Aqui, a Filosofia é
identificada com a definição e a ação de algumas pessoas que pensam sobre a
vida moral, dedicando-se à contemplação do mundo para aprender com ele a
controlar e dirigir suas vidas de modo ético e sábio.
A Filosofia seria uma contemplação do mundo e dos homens
para nos conduzir a uma vida justa, sábia e feliz, ensinando-nos o domínio
sobre nós mesmos, sobre nossos impulsos, desejos e paixões. É nesse sentido que
se fala, por exemplo, numa filosofia do budismo.
Esta definição, porém, nos diz, de modo vago, o que se
espera da Filosofia (a sabedoria interior), mas não o que é e o que faz a
Filosofia e, por isso, também não podemos aceitá-la.
3. Esforço racional para conceber o Universo como uma
totalidade ordenada e dotada de sentido. Nesse caso, começa-se distinguindo
entre Filosofia e religião e até mesmo opondo uma à outra, pois ambas possuem o
mesmo objeto (compreender o Universo), mas a primeira o faz através do esforço
racional, enquanto a segunda, por confiança (fé) numa revelação divina.
Ou seja, a Filosofia procura discutir até o fim o sentido e
o fundamento da realidade, enquanto a consciência religiosa se baseia num dado
primeiro e inquestionável, que é a revelação divina indemonstrável.
Pela fé, a religião aceita princípios indemonstráveis e até
mesmo aqueles que podem ser considerados irracionais pelo pensamento, enquanto
a Filosofia não admite indemonstrabilidade e irracionalidade. Pelo contrário, a
consciência filosófica procura explicar e compreender o que parece ser
irracional e inquestionável.
No entanto, esta definição também é problemática, porque dá
à Filosofia a tarefa de oferecer uma explicação e uma compreensão totais sobre
o Universo, elaborando um sistema universal ou um sistema do mundo, mas
sabemos, hoje, que essa tarefa é impossível.
Há pelo menos duas limitações principais a esta pretensão
totalizadora: em primeiro lugar, porque a explicação sobre a realidade também é
oferecida pelas ciências e pelas artes, cada uma das quais definindo um aspecto
e um campo da realidade para estudo (no caso das ciências) e para a expressão
(no caso das artes), já não sendo pensável uma única disciplina que pudesse
abranger sozinha a totalidade dos conhecimentos; em segundo lugar, porque a
própria Filosofia já não admite que seja possível um sistema de pensamento
único que ofereça uma única explicação para o todo da realidade. Por isso, esta
definição também não pode ser aceita.
4. Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e
das práticas. A Filosofia, cada vez mais, ocupa-se com as condições e os
princípios do conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro; com a
origem, a forma e o conteúdo dos valores éticos, políticos, artísticos e
culturais; com a compreensão das causas e das formas da ilusão e do preconceito
no plano individual e coletivo; com as transformações históricas dos conceitos,
das idéias e dos valores.
A Filosofia volta-se, também, para o estudo da consciência
em suas várias modalidades: percepção, imaginação, memória, linguagem,
inteligência, experiência, reflexão, comportamento, vontade, desejo e paixões,
procurando descrever as formas e os conteúdos dessas modalidades de relação
entre o ser humano e o mundo, do ser humano consigo mesmo e com os outros.
Finalmente, a Filosofia visa ao estudo e à interpretação de idéias ou
significações gerais como: realidade, mundo, natureza, cultura, história,
subjetividade, objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito,
contradição, mudança, etc.
Sem abandonar as questões sobre a essência da realidade, a
Filosofia procura diferenciar-se das ciências e das artes, dirigindo a
investigação sobre o mundo natural e o mundo histórico (ou humano) num momento
muito preciso: quando perdemos nossas certezas cotidianas e quando as ciências
e as artes ainda não ofereceram outras certezas para substituir as que
perdemos.
Em outras palavras, a Filosofia se interessa por aquele
instante em que a realidade natural (o mundo das coisas) e a histórica (o mundo
dos homens) tornam-se estranhas, espantosas, incompreensíveis e enigmáticas,
quando o senso comum já não sabe o que pensar e dizer e as ciências e as artes
ainda não sabem o que pensar e dizer.
Esta última descrição da atividade filosófica capta a
Filosofia como análise (das condições da ciência, da religião, da arte,
da moral), como reflexão (isto é, volta da consciência para si mesma
para conhecer-se enquanto capacidade para o conhecimento, o sentimento e a
ação) e como crítica (das ilusões e dos preconceitos individuais e
coletivos, das teorias e práticas científicas, políticas e artísticas), essas
três atividades (análise, reflexão e crítica) estando orientadas pela
elaboração filosófica de significações gerais sobre a realidade e os seres
humanos. Além de análise, reflexão e crítica, a Filosofia é a busca do
fundamento e do sentido da realidade em suas múltiplas formas indagando o que
são, qual sua permanência e qual a necessidade interna que as transforma em
outras. O que é o ser e o aparecer-desaparecer dos seres?
A Filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os
procedimentos e conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica
sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma
interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações das obras de
arte e do trabalho artístico. Não é sociologia nem psicologia, mas a
interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da sociologia e da
psicologia. Não é política, mas interpretação, compreensão e reflexão sobre a
origem, a natureza e as formas do poder. Não é história, mas interpretação do
sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e compreensão do que
seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da ação humanos,
conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir,
conhecimento da mudança das formas do real ou dos seres, a Filosofia sabe que
está na História e que possui uma história.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite
à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.
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