"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Nosso próprio tempo (Parte 08/08)



— Algumas vezes as pessoas falam ou então andam enquanto dormem. Podemos chamar isto de um “automatismo mental”. Também sob hipnose as pessoas podem dizer coisas “sem querer”. E você se lembra dos surrealistas, que tentavam escrever e pintar “automaticamente”, transformando-se, assim, em “médiuns” de seus próprios inconscientes.  

— Lembro-me disso também.
— Em nosso século [XX], e com alguma regularidade, temos notícias de pessoas, de “médiuns” que seriam capazes de entrar em contato com os mortos. Este “médium” receberia mensagens de pessoas que, por exemplo, viveram há muitos anos. E, então, ou o “médium” fala com a voz do morto, ou então escreve “automaticamente”, “psicografando”, como se costuma dizer, o que o morto tem a dizer. Para muitas pessoas, isto tem sido visto como prova da existência de uma vida após a morte, ou da existência de muitas vidas.
— Entendo.
— Não estou querendo dizer que todos estes “médiuns” sejam uns charlatões. Alguns deles, ao que parece, agem de boa-fé. Eles até podem ser “médiuns”, mas só de seu próprio inconsciente. Existem vários exemplos de experimentos envolvendo “médiuns” que, numa espécie de transe, mostraram conhecimentos e habilidades que nem eles, nem as outras pessoas podiam explicar de onde vinham. Uma mulher que não sabia hebraico, por exemplo, de repente começou a falar nesta língua. E nesse caso a explicação foi a seguinte: ou ela já tinha vivido uma vez, ou então realmente tinha entrado em contato com um espírito que falava hebraico. E então, Sofia?
— O que você acha?
— Descobriu-se, depois, que ela tivera uma babá judia quando criança.
— Ah…
— Você ficou desapontada, Sofia? Pois não deveria. Afinal, não é fantástico descobrir como uma só pessoa é capaz de armazenar em seu inconsciente tantas experiências já vividas?
— Entendo o que você quer dizer.
— Muitas das curiosidades de nossa vida cotidiana também podem ser explicadas pela teoria do inconsciente de Freud. Por exemplo, quando recebo o telefonema de um amigo que não vejo há muitos anos, justamente no momento em que estou procurando o telefone dele para ligar…
— Fico até arrepiada!
— O motivo desta aparente coincidência pode ser, por exemplo, o fato de nós dois termos ouvido no rádio uma velha canção; uma canção que ouvimos da última vez em que nos encontramos, por exemplo. Acontece que simplesmente não percebemos a ligação entre as coisas.
— Quer dizer que tudo isto não passa ou de charlatanismo, ou então do efeito “número premiado de loteria”, ou ainda de manobras do inconsciente?
— De qualquer forma, estou querendo dizer que é sempre mais saudável olhar com certo ceticismo para essas estantes de livros. E isto é importante também para um filósofo. Na Inglaterra, os céticos têm a sua própria associação. Há muitos anos eles ofereceram uma elevada soma em dinheiro ao primeiro que lhes trouxesse uma pequena prova que fosse de algum evento sobrenatural. E não precisava ser nada de espetacular; um simples caso de telepatia bastava. Até hoje ninguém se apresentou.
— Entendo.
— Outra coisa, completamente diferente, é o fato de existirem muitas coisas que nós, seres humanos, não entendemos. É possível até que não conheçamos ainda todas as leis da natureza. No século passado [XIX], muitos consideravam magia fenômenos como o magnetismo ou a eletricidade. Acho que minha bisavó ficaria de olhos arregalados se eu falasse com ela sobre televisão ou computadores.
— Mas você não acredita mesmo em nada de sobrenatural?
— Já falamos sobre isso. A simples palavra “sobrenatural” já me soa estranha. Não, não… acredito que existe apenas uma natureza. Mas que, em compensação, ela é absolutamente fabulosa.
— Isto significa que o sobrenatural só existe nos livros que você me mostrou?
— Todos os verdadeiros filósofos devem ter os olhos bem abertos. Mesmo que nós nunca tenhamos visto uma gralha branca, jamais podemos desistir de procurar por uma. E poderá chegar o dia em que até um cético como eu tenha de aceitar um fenômeno no qual não quis acreditar até então. Se eu não considerasse essa possibilidade, seria um dogmático. E não seria, portanto, um filósofo de verdade.
Durante algum tempo, Alberto e Sofia ficaram sentados no banco da praça sem dizer nada. Orgulhosas, as pombas arrulhavam e passavam por eles de pescoço empinado. De vez em quando algumas voavam, espantadas por um movimento brusco ou por uma bicicleta que passava.
— Preciso ir para casa preparar a festa — disse Sofia quebrando o silêncio.
— Só que antes de nos despedirmos quero lhe mostrar uma gralha branca. Ela está mais perto do que a gente pensa.
Alberto levantou-se e fez um sinal para que ela o acompanhasse de novo à livraria.
Desta vez deixaram de lado todos os livros sobre fenômenos sobrenaturais. Alberto parou diante de uma pequena estante que ficava no fundo da livraria. Sobre a estante havia uma pequena placa em que estava escrito: FILOSOFIA.
Alberto apontou para um dos livros e Sofia levou um tremendo susto quando leu o título: O MUNDO DE SOFIA.
— Posso comprá-lo para você?
— Não sei se ouso responder que sim.
Pouco depois, porém, ela já voltava para casa com o livro numa das mãos e a sacola de compras para a festa na outra.

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