"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Nosso próprio tempo (Parte 01/08)



(…)
Na manhã seguinte, Sofia foi acordada por sua mãe, que queria lhe desejar um bom dia antes de ir para o trabalho. Ela entregou a Sofia uma pequena lista de coisas que deveriam ser compradas na cidade para a festa.
Nem bem ela tinha saído de casa, o telefone tocou. Era Alberto. Ele sabia muito bem quando Sofia estava sozinha em casa.
— Como vai o plano secreto?
— Psiu! Nenhuma palavra! Não podemos dar a ele a menor chance de pensar a respeito disso.
— Acho que consegui direitinho desviar a atenção dele ontem.
— Ótimo.
— E quanto à filosofia?  

— É justamente por causa disso que estou ligando. Já chegamos ao nosso século [XX] e daqui para a frente você vai ter de se virar sozinha. As bases para isto você já tem, mas ainda vamos nos encontrar mais uma vez para falarmos um pouco sobre o nosso próprio tempo.
— Preciso ir até a cidade…
— Tanto melhor. Eu acabei de dizer que vamos conversar sobre o nosso tempo.
— E daí?
— Seria bom, portanto, estarmos bem no meio da agitação, por assim dizer.
— E vamos nos encontrar na sua casa?
— Não, aqui não. A casa está toda revirada porque estou procurando microfones escondidos.
— Ah…
— Na praça do mercado tem um café que foi inaugurado há pouco tempo. É o Café Pierre. Você conhece?
— Conheço. A que horas vamos nos encontrar?
— Ao meio-dia.
— Então até meio-dia, no Café Pierre.
— Até lá.
Dois minutos depois do meio-dia, Sofia entrou no Café Pierre. Era um desses cafés que estão na moda, com mesinhas redondas, cadeiras pretas e garrafas viradas de cabeça para baixo sobre dispositivos para dosagem automática de bebidas.
Não era um local muito grande e a primeira coisa que Sofia percebeu foi que Alberto ainda não tinha chegado. Quase todas as mesas estavam ocupadas, mas Sofia olhou cada um daqueles rostos e viu que nenhum deles era de Alberto.
Ela não estava acostumada a ir sozinha a esses lugares. Não seria melhor simplesmente dar meia-volta e voltar um pouco mais tarde para procurar Alberto?
Foi até ao balcão de mármore e pediu uma xícara de chá com limão. Depois pegou a xícara de chá e foi até uma mesa que estava desocupada. De lá ficou olhando a porta de entrada do café. As pessoas entravam e saíam, e tudo que Sofia via era que Alberto não chegava.
Se pelo menos ela tivesse trazido um jornal!
Finalmente, começou a olhar para os que estavam à sua volta. Por vezes seu olhar foi retribuído e por um instante ela se sentiu uma pessoa adulta. É certo que só tinha quinze anos, mas podia tranqüilamente passar por dezessete – ou pelo menos por dezesseis e meio.
O que será que aquelas pessoas sentadas no café pensavam sobre suas vidas? Sofia teve a impressão de que eles estavam ali por estar e que tinham ido ao café apenas para quebrar a rotina. Todos falavam muito e gesticulavam bastante, mas não parecia que estivessem falando sobre alguma coisa importante.
Sofia pensou em Kierkegaard, para quem o burburinho de vozes era o sinal mais evidente das multidões. Será que todas aquelas pessoas viviam no estágio estético? Ou será que havia alguma coisa que fosse existencialmente importante para elas?
Numa das primeiras cartas, Alberto escrevera que os filósofos se parecem com as crianças. E de novo Sofia teve medo de se transformar em adulto. E se ela também passasse a viver confortavelmente lá no fundo da pelagem do coelho que tinha sido tirado da cartola preta do universo?
Enquanto pensava sobre tudo isto, Sofia olhava de vez em quando para a porta do café. E de repente Alberto entrou apressado. Mesmo em pleno verão ele usava uma boina preta. Fora isto, usava também um casaco cinza “espinha de peixe” até a altura do quadril. Ele a viu imediatamente e veio até à mesa. Sofia pensou que se encontrar com ele em público era uma coisa absolutamente nova.
— Já é meio-dia e quinze! Você está atrasado!
— Isto se chama o quarto de hora acadêmico. Posso convidá-la para almoçar?
Sentou-se e olhou-a nos olhos. Sofia sacudiu os ombros, indiferente.
— Para mim, tanto faz. Um sanduíche, talvez.
Alberto foi até ao balcão. Pouco depois voltou com uma xícara de café e duas baguetes enormes recheadas de queijo e presunto.
— Foi caro?
— Não, Sofia.
— Será que você não tem pelo menos uma desculpa por ter se atrasado tanto?
— Não, não tenho, pois foi de propósito que me atrasei. Já vou explicar por quê.
Deu umas mordidas com vontade na sua baguete e depois disse:
— Vamos falar hoje sobre o nosso século [XX].
— Aconteceu alguma coisa de filosoficamente interessante nele?
— E como! Tanto que há correntes seguindo em todas as direções. Primeiro vou contar alguma coisa sobre o existencialismo. O termo designa um conceito “guarda-chuva”, sob o qual se acomodam diversas correntes filosóficas que têm como ponto de partida a situação existencial do homem. Costumamos falar também da filosofia existencialista do século XX. Alguns filósofos existencialistas seguiram a tradição de Kierkegaard; outros, a de Hegel e Marx.
— Certo.

Extratos da obra de GAARDER, Jostein.
O Mundo de Sofia.  Romance da História da Filosofia.
São Paulo: Cia das Letras, 1996.

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