"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Nosso próprio tempo (Parte 04/08)



— Quando você está apaixonada e esperando o telefonema de seu namorado, pode ser que você “ouça” a noite inteira que ele não telefona para você. O fato de ele não telefonar é exatamente o que você registra o tempo todo. Se você vai buscar seu namorado na estação ferroviária e está numa plataforma tão cheia de gente que não consegue encontrá-lo, pode estar certa de que você não enxerga todas essas pessoas. Elas incomodam, mas são irrelevantes para você. Você pode achá-las antipáticas, ou mesmo repugnantes. Elas tomam tanto espaço… Mas a única coisa que você registra é que ele não está ali.   

— Entendo.
— Simone de Beauvoir tentou aplicar o existencialismo à análise dos papéis sexuais. Sartre já havia dito que o homem não possui uma natureza eterna a que possa recorrer. Somos nós que criamos aquilo que somos.
— Sim?
— O mesmo vale para a questão dos papéis sexuais. Simone de Beauvoir mostrou que não existe uma “natureza feminina” ou uma “natureza masculina” eternas, ao contrário do que tradicionalmente rezava o senso comum. Sempre se afirmou, por exemplo, que a natureza do homem seria uma natureza “transcendente”, ou seja, algo que o leva a ultrapassar fronteiras. Isto explicaria por que o homem sempre se sentiu impelido a buscar um sentido e um objetivo fora de casa. Da mulher, por outro lado, sempre se disse que sua vida se orienta no sentido exatamente oposto. A natureza da mulher seria uma natureza “imanente”, o que significa que ela teria uma tendência a continuar no mesmo lugar em que já se encontra. Conseqüentemente, à mulher caberia cuidar da família, do meio ambiente e das coisas à sua volta. Hoje em dia costuma-se dizer que as mulheres estão mais aptas a lidar com os chamados “valores suaves” do que os homens.
— Simone de Beauvoir quis mesmo dizer isto?
— Não. Desta vez, excepcionalmente, você parece não ter ouvido direito o que eu disse. Simone de Beauvoir disse exatamente que não existe nem uma natureza feminina, nem uma natureza masculina. Ao contrário: ela acreditava que as mulheres e os homens tinham de se libertar impreterivelmente desses preconceitos e ideais fortemente arraigados.
— Concordo com ela de todo o coração.
— Seu livro mais importante foi publicado em 1949 e tinha o título de O segundo sexo.
— O que ela queria dizer com isto?
— Ela estava pensando na mulher. Na nossa cultura, a mulher tinha sido transformada num “segundo sexo”. Só o homem aparecia como sujeito desta cultura. A mulher, ao contrário, fora transformada em objeto do homem. Dessa forma, lhe haviam tirado a responsabilidade por sua própria vida.
— E então?
— Para Simone de Beauvoir, a mulher precisa reconquistar esta responsabilidade. Ela precisa se reencontrar consigo mesma e não pode simplesmente aliar sua identidade à de seu marido. Isto porque não é só o homem que reprime a mulher. A própria mulher se reprime quando não assume a responsabilidade por sua própria vida.
— Quer dizer que somos nós mesmas que decidimos até que ponto podemos ser livres e independentes?
— Isso mesmo. A partir dos anos 40, o existencialismo passou a influenciar a literatura européia, sobretudo o teatro. O próprio Sartre escreveu romances e peças de teatro. Outros autores importantes são o francês Albert Camus, o irlandês Samuel Beckett, o romeno Eugène Ionesco e o polonês Witold Gombrowicz. Um elemento característico de todos eles, e também de muitos outros autores modernos, é a representação do absurdo. Na certa você já ouviu falar no teatro do absurdo.
— Sim.
— E você entende o que a palavra “absurdo” significa?
— Significa alguma coisa sem sentido ou irracional, não é?
— Exatamente. O “teatro do absurdo” está preocupado em mostrar a falta de sentido da vida. O que se espera é que o público não apenas assista à peça, mas também reaja a ela. Não era objetivo deste teatro, portanto, fazer uma apologia da falta de sentido da vida. Ao contrário: por meio da representação e da exposição às claras do absurdo, em cenas do cotidiano, por exemplo, o público era levado a refletir sobre a possibilidade de uma vida mais verdadeira, mais essencial.
— Continue.
— Freqüentemente, o “teatro do absurdo” aborda situações absolutamente triviais. O homem é representado exatamente como é. Mas quando você leva para o palco de um teatro o que acontece, por exemplo, dentro do banheiro de uma casa como todas as outras, numa manhã como todas as outras, o público acaba rindo. Este riso pode ser entendido como um mecanismo de defesa contra o fato de as pessoas se verem representadas sem rodeios no palco.
— Entendo.
— Mas o “teatro do absurdo” também pode ter traços surrealistas. Freqüentemente, as personagens são enredadas em devaneios e em situações as mais improváveis. E quando elas aceitam essas situações sem o menor sinal de surpresa, quando as aceitam sem qualquer reação, então é a vez de o público reagir a esta falta de reação. A propósito, o mesmo vale para os filmes mudos de Charlie Chaplin. O elemento cômico nestes filmes geralmente é a falta de surpresa com que Carlitos encara o absurdo das situações que vive. O expectador ri do que vê, mas acaba cismado com sua própria capacidade de se surpreender com as coisas e de reagir a elas.
— Às vezes é constrangedor ver tudo o que as pessoas engolem sem reagir.
— Sim, e às vezes é certo pensar que se tem de sair de determinado lugar, mesmo que não se saiba para onde ir.
— Se a casa está pegando fogo, a gente tem de sair, mesmo que não tenha outro lugar para ficar.
— É verdade. Você quer outra xícara de chá? Ou talvez um refrigerante?
— Um refrigerante. Mas continuo achando você um chato por ter se atrasado.
— Posso perfeitamente conviver com isso.
Pouco depois, Alberto já estava de volta com uma xícara de café e o refrigerante. Nesse meio tempo, Sofia começou a achar agradável estar num café. Ela já não tinha tanta certeza de que eram totalmente vazias as conversas nas outras mesas.
Ao colocar a garrafa de refrigerante sobre a mesa, Alberto fez barulho. Algumas pessoas de outras mesas olharam.
— E com isto chegamos ao fim de nossa jornada — disse ele.
— A filosofia termina com Sartre e o existencialismo?
— Não, seria um exagero afirmar uma coisa dessas. A filosofia existencialista foi de grande importância para muitas pessoas no mundo inteiro. Como vimos, suas raízes remontam a Kierkegaard e até a Sócrates. Do mesmo modo, outras correntes filosóficas do passado experimentaram um novo apogeu e uma renovação em nosso século.
— Você pode me dar alguns exemplos?

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