Nosso próprio tempo (Parte 03/08)
— Por toda a
história da filosofia, os filósofos tentaram responder à pergunta sobre o que o
homem é, ou o que é a natureza humana. Sartre, ao contrário, acha que o homem
não possui esta “natureza” eterna a que se apegar. Por isso é que, para Sartre,
não faz sentido perguntar pelo sentido da vida em geral. Em outras palavras,
estamos condenados à improvisação. Somos como atores que são colocados num
palco sem termos decorado um papel, sem um roteiro definido e sem um “ponto”
para nos sussurrar ao ouvido o que devemos dizer ou fazer. Nós mesmos temos de
decidir como queremos viver.
— De alguma forma
isto também está certo. Se folhearmos a Bíblia, ou um livro de filosofia,
teríamos dificuldade em encontrar uma fórmula sobre como devemos viver.
— Pronto, você já
entendeu. Mas Sartre diz que quando o homem percebe que existe e que um dia
terá de morrer, e sobretudo quando não vê qualquer sentido nisto tudo, ele
passa a experimentar o medo. Você
deve se lembrar ainda de que o medo também era muito importante na descrição
que Kierkegaard fez do homem numa situação existencial.
— Sim.
— Sartre também diz
que o homem se sente alienado num
mundo sem sentido. Quando descreve a “alienação” do homem, Sartre retoma os
pontos centrais do pensamento de Hegel e de Marx. O sentimento do homem de ser
um estranho no mundo, diz Sartre, leva a uma sensação de desespero, tédio,
náusea e absurdidade.
— É muito comum a
gente ouvir que fulano está “deprê”, ou então que acha tudo “um saco”.
— Sim. Sartre
descreve o homem urbano do século XX. Você se recorda de que os humanistas do
Renascimento tinham propagado em tom de triunfo a liberdade e a independência
do homem. Para Sartre, a liberdade do homem era como uma maldição. “O homem
está condenado à liberdade”, ele dizia. Condenado porque não se criou e, não
obstante, é livre. E uma vez atirado ao mundo, passa a ser responsável por tudo
o que faz.
— Sim. Afinal, não
pedimos a ninguém para sermos criados como indivíduos livres.
— É exatamente este
o ponto central em Sartre. Acontece que somos
indivíduos livres e nossa liberdade nos condena a tomarmos decisões durante
toda a nossa vida. Não existem valores ou regras eternas, a partir das quais
podemos nos guiar. E isto torna mais importantes nossas decisões, nossas escolhas.
Sartre chama a atenção precisamente para o fato de o homem nunca poder negar
sua responsabilidade pelo que faz. Por esta razão, não podemos simplesmente
colocar de lado nossa responsabilidade e dizer que “temos” de ir trabalhar, ou
então que “temos” de nos pautar por certas expectativas burguesas quanto ao
modo como devemos viver. Aquele que assim procede mescla-se a uma massa anônima
e se transforma em parte impessoal dela. Ele foge de si mesmo e se refugia na mentira.
De outra parte, a liberdade do homem nos obriga a fazer de nós alguma coisa, a
ter uma existência “autêntica” ou verdadeira.
— Entendo.
— O mesmo vale para
as nossas decisões éticas. Nunca podemos responsabilizar a natureza e a
fraqueza humanas, ou qualquer outra coisa, pelas decisões que tomamos. Muitas
vezes acontece de homens já bem crescidinhos se comportarem como porcos e
colocarem a culpa no “velho Adão” que pretensamente trazem dentro de si. Mas
este “velho Adão” não existe. Ele não passa de uma figura de que nos valemos
para fugir à responsabilidade por nossos próprios atos.
— Apesar disso,
deve haver limites para toda essa culpa que recai sobre os ombros do homem.
— Embora Sartre
afirme que a vida não possui um sentido inato, isto não significa que para ele
nada importa. Sartre não é um niilista.
— O que é isto?
— Alguém que acha
que nada tem um sentido e que tudo é permitido. Sartre diz que a vida deve ter um sentido. Isto é um
imperativo. Só que nós mesmos é que temos de criar este sentido para a nossa
própria vida. Existir significa criar a sua própria vida.
— Você poderia
explicar isso um pouco mais?
— Sartre tentou
mostrar que a consciência não é nada até que perceba alguma coisa. Pois a
consciência é sempre consciência de
alguma coisa. E depende de nós, e também de nosso meio, o que seja esta “alguma
coisa”. Nós mesmos contribuímos para o que sentimos e percebemos, pois somos
nós que escolhemos aquilo que nos é importante.
— Você teria um
exemplo?
— Duas pessoas
podem estar presentes num mesmo recinto e percebê-lo de maneira totalmente
diversa. Isto porque deixamos nossa opinião ou nossos interesses agirem quando
estamos percebendo o mundo à nossa volta. Uma mulher grávida, por exemplo, pode
ter a sensação de ver mulheres grávidas por toda a parte. Isto não significa
que antes não havia mulheres grávidas, mas a gravidez tem agora um novo sentido
para ela. Pessoas doentes vêem ambulâncias por toda a parte…
— Entendo.
— Talvez a nossa
própria vida influencie o modo como percebemos as coisas num recinto. Se uma
coisa não me é importante, é provável que eu nem a perceba. E agora posso
explicar por que cheguei tão atrasado.
— Você não disse
que tinha sido de propósito?
— Primeiro me conte
o que você viu quando entrou no café.
— A primeira coisa
que eu vi foi que você não estava.
— Não é estranho
que a primeira coisa que você viu neste local tenha sido justamente algo que
não estava aqui?
— Pode ser, mas nós
tínhamos combinado o encontro.
— Sartre usa
justamente a ida a um café para explicar como nós “eliminamos” aquilo que não
tem importância para nós.
— E você chegou
atrasado só para me mostrar isto?
— Sim. Eu queria
que você entendesse este ponto importante da filosofia de Sartre. Meu atraso
pode ser considerado, portanto, parte de uma tarefa.
— Que loucura…
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