"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Hume na trilha do conhecimento



Quando pensamos em conhecimento e em David Hume (1711-1776), imediatamente nos vem à mente a ideia de uma crise geral no conhecimento. Como vimos até agora, o conhecimento possuía duas possibilidades de se realizar no Sujeito. A primeira é a via racionalista, proposta por René Descartes, e que se apoiava numa concepção quase platônica (metafísica): ou seja, o conhecimento poderia ser recolhido e armazenado como se fosse objeto que se localizasse em suspenso, num mundo composto puramente por formas geométricas e leis matemáticas. As idéias, os conceitos, poderiam ser colhidos deste mundo como se estivéssemos a colher as maçãs da Árvore do Conhecimento no centro do Jardim do Éden - para tanto, seria necessário, exclusivamente, o emprego metódico da Razão.  

A outra alternativa é a da proposta empirista, cujo representante maior, como já vimos, fora Francis Bacon. Por esta via, todo o processo de conhecer tinha início nas sensações e nas diversas associações que o entendimento poderia realizar sobre as experiências do Sujeito no mundo. Contudo ,o empirismo ainda mantém um ideal, qual seja ,de que o conhecimento existe, sem sombra de dúvida, necessária e universalmente, e que é resgatado pelo Sujeito do conhecimento por meio de seu entendimento. Ainda que seja bem mais fácil perceber uma certa postura metafísica no Racionalismo, de certa forma ela existe em ambas as escolas filosóficas.
Segundo Hume, encontramos este ponto de vista metafísico no empirismo na medida em que esta escola concorda com a ideia de uma relação de causa e efeito, que existe no mundo, e que é independentemente do Sujeito do Conhecimento. Este Sujeito apenas as assinala na forma das leis do determinismo. Se o empirista é aquele que acredita que o conhecimento deve iniciar com as observações das sensações e, também, por meio das associações que se pode realizar entre estas sensações por meio da repetição, então ele também acredita que essas repetições representam uma espécie de Lei que determina a maneira como as coisas foram, são e como elas sempre serão.
Por exemplo, se coloco a mão no fogo dez vezes seguidas, se toda vez que eu o faço sinto um calor que me queima a pele, então crio logo a crença de que toda vez, no futuro, que eu colocar a mão no fogo, necessariamente, me queimarei. Esta crença de que a queimadura irá necessariamente acontecer se eu colocar a mão no fogo é tão forte que se torna uma Lei. Algo inteiramente independente de mim. Aparentemente, esta Lei, justamente por ser uma Lei, não se restringe à minha pessoa individualmente. Eu como que amplio a minha crença tornando-a uma Lei da seguinte forma: “Qualquer um que colocar a mão no fogo, e em qualquer época, irá, necessariamente, se queimar.”
Ora, esta afirmação é uma das diversas representantes da capacidade de associar idéias por meio da repetição. O formato desta afirmação é muito comum nas ciências de modo geral, justamente porque este é o método empirista de conhecer e de afirmar coisas sobre o Real. “Conhecer o Real é saber e afirmar Verdades sobre ele”. No entanto, para Hume, da maneira como está colocada a postura empirista apontada acima aparecem inseridos nela justamente os ideais metafísicos do racionalismo, qual seja, a busca pela Universalidade e pela Necessidade do conhecimento. Porém, ao invés dessa necessidade e universalidade ocorrem por meio do cálculo matemático e das formas puras da geometria (como no racionalismo), elas serão representadas pela ideia da Cadeia Causal.
A Cadeia Causal é uma concepção filosófica tão velha quanto a própria capacidade humana de conhecer. Segundo esta concepção, existem relações de causa e efeito no mundo. Estas causas e efeitos são eventos que se ligam e se determinam no sentido passado - presente - futuro. Se “A”, então “B” (“A” é a Causa de “B”; ou “B” é o Efeito de “A”. Sempre no sentido A - B). O determinismo aponta para uma direção no tempo, esta direção é o tempo necessário para que as coisas se determinem. Uma vez que um evento tenha ocorrido, ele não poderá jamais voltar a ocorrer e é isto o que dá a consistência ao que chamamos de passado (o tempo dos eventos que não voltam mais a ocorrer). Por sua vez, aquilo que está em processo de realização da consistência é o que chamamos de presente (o tempo da ocorrência atual dos eventos). Por último, ao que ainda não ocorreu atribuímos a qualidade de futuro (o tempo em que certos eventos determinados irão se dar).
O Fogo é a causa da minha queimadura, esta é o efeito do fogo. Se apareço com a mão queimada é porque a coloquei no fogo num momento anterior. Causa e efeito se ligam de maneira tão íntima que se torna quase impossível dissociá-las. Por exemplo, se apareço para trabalhar com a mão queimada, logo alguém vem me perguntar se eu a coloquei em algo quente como o fogo. Esta pessoa está tentando conhecer a Causa que provocou a minha atual situação (este efeito visível de estar com a mão queimada). Esta pessoa sabe, pelas repetições que já presenciou durante toda a vida, que as queimaduras “sempre” aparecem depois de uma exposição a altas temperaturas como as que encontramos nas chamas do fogo.
Hume chama este tipo de ligação causal de uma simples associação, que não tem a força de uma Lei. Aliás, todas as leis são, para ele, frutos de associações diversas e de uma disposição a generalizações metafísicas inatas aos seres humanos. Segundo ele, todos nós possuímos esta tendência metafísica de construir um conhecimento certo sobre uma realidade absolutamente incerta. Como veremos adiante, a crítica de Hume ao conhecimento baseado em considerações metafísicas, assim como ele acredita serem as Leis do determinismo, levarão a uma enorme crise na filosofia ocidental.

Fonte: Palavra em Ação.
CD-ROM, Claranto Editora.

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