"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A criação de direitos


Quando a democracia foi inventada pelos atenienses, criou-se a tradição democrática como instituição de três direitos fundamentais que definiam o cidadão: igualdade, liberdade e participação no poder. Igualdade significava: perante as leis e os costumes da polis, todos os cidadãos possuem os mesmos direitos e devem ser tratados da mesma maneira. Por esse motivo, Aristóteles afirmava que a primeira tarefa da justiça era igualar os desiguais, seja pela redistribuição da riqueza social, seja pela garantia de participação no governo. Também pelo mesmo motivo, Marx afirmava que a igualdade só se tornaria um direito concreto quando não houvesse escravos, servos e assalariados explorados, mas fosse dado a cada um segundo suas necessidades e segundo seu trabalho.
A observação de Aristóteles e, depois, a de Marx indicam algo preciso: a mera declaração do direito à igualdade não faz existir os iguais, mas abre o campo para a criação da igualdade, através das exigências e demandas dos sujeitos sociais. Em outras palavras, declarado o direito à igualdade, a sociedade pode instituir formas de reivindicação para criá-lo como direito real.  

Liberdade significava: todo cidadão tem o direito de expor em público seus interesses e suas opiniões, vê-los debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela maioria, devendo acatar a decisão tomada publicamente. Na modernidade, com a Revolução Inglesa de 1644 e a Revolução Francesa de 1789, o direito à liberdade ampliou-se. Além da liberdade de pensamento e de expressão, passou a significar o direito à independência para escolher o ofício, o local de moradia, o tipo de educação, o cônjuge, em suma, a recusa das hierarquias fixas, supostamente divinas ou naturais.
Acrescentou-se, em 1789, um direito de enorme importância, qual seja, o de que todo indivíduo é inocente até prova em contrário, que a prova deve ser estabelecida perante um tribunal e que a liberação ou punição devem ser dadas segundo a lei. Com os movimentos socialistas, a luta social por liberdade ampliou ainda mais esse direito, acrescentando-lhe o direito de lutar contra todas as formas de tirania, censura e tortura e contra todas as formas de exploração e dominação social, econômica, cultural e política.
Observamos aqui o mesmo que na igualdade: a simples declaração do direito à liberdade não a institui concretamente, mas abre o campo histórico para a criação desse direito pela práxis humana.
Participação no poder significava: todos os cidadãos têm o direito de participar das discussões e deliberações públicas da polis, votando ou revogando decisões. Esse direito possuía um significado muito preciso. Nele afirmava-se que, do ponto de vista político, todos os cidadãos têm competência para opinar e decidir, pois a política não é uma questão técnica (eficácia administrativa e militar) nem científica (conhecimentos especializados sobre administração e guerra), mas ação coletiva, isto é, decisão coletiva quanto aos interesses e direitos da própria polis.
A democracia ateniense, como se vê, era direta. A moderna, porém, é representativa. O direito à participação tornou-se, portanto, indireto, através da escolha de representantes. Ao contrário dos outros dois direitos, este último parece ter sofrido diminuição em lugar de ampliação. Essa aparência é falsa e verdadeira.
Falsa, porque a democracia moderna foi instituída na luta contra o Antigo Regime e, portanto, em relação a esse último, ampliou a participação dos cidadãos no poder, ainda que sob a forma da representação.
Verdadeira, porque, como vimos, a república liberal tendeu a limitar os direitos políticos aos proprietários privados dos meios de produção e aos profissionais liberais da classe média, aos homens adultos “independentes”. Todavia, as lutas socialistas e populares forçaram a ampliação dos direitos políticos com a criação do sufrágio universal (todos são cidadãos eleitores: homens, mulheres, jovens, negros, analfabetos, trabalhadores, índios) e a garantia da elegibilidade de qualquer um que, não estando sob suspeita de crime, se apresente a um cargo eletivo.
Vemos aqui, portanto, o mesmo que nos direitos anteriores: lutas sociais que transformam a simples declaração de um direito em direito real, ou seja, vemos aqui a criação de um direito.
As lutas por igualdade e liberdade ampliaram os direitos políticos (civis) e, a partir destes, criaram os direitos sociais – trabalho, moradia, saúde, transporte, educação, lazer, cultura -, os direitos das chamadas “minorias”[i] – mulheres, idosos, negros, homossexuais, crianças, índios – e o direito à segurança planetária – as lutas ecológicas e contra as armas nucleares.
As lutas populares por participação política ampliaram os direitos civis: direito de opor-se à tirania, à censura, à tortura, direito de fiscalizar o Estado por meio de organizações da sociedade (associações, sindicatos, partidos políticos); direito à informação pela publicidade das decisões estatais.
A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. Com isso, dois traços distinguem a democracia de todas as outras formas sociais e políticas:
1. a democracia é a única sociedade e o único regime político que considera o conflito legítimo. Não só trabalha politicamente os conflitos de necessidade e de interesses (disputas entre os partidos políticos e eleições de governantes pertencentes a partidos opostos), mas procura instituí-los como direitos e, como tais, exige que sejam reconhecidos e respeitados. Mais do que isso. Na sociedade democrática, indivíduos e grupos organizam-se em associações, movimentos sociais e populares, classes se organizam em sindicatos e partidos, criando um contra-poder social que, direta ou indiretamente, limita o poder do Estado;
2. a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva (a liberdade) e de alterar-se pela própria praxis.

Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.



[i] Parece estranho falar em “minoria” para referir-se a mulheres, negros, idosos, crianças, pois quantitativamente formam a maioria. É que a palavra minoria não é usada em sentido quantitativo, mas qualitativo. Quando o pensamento político liberal definiu os que teriam direito à cidadania, usou como critério a ideia de maioridade racional: seriam cidadãos aqueles que houvessem alcançado o pleno uso da razão. Alcançaram o pleno uso da razão ou a maioridade racional os que são independentes, isto é, não dependem de outros para viver. São independentes os proprietários privados dos meios de produção e os profissionais liberais. São dependentes e, portanto, em estado de minoridade racional: as mulheres, as crianças, os adolescentes, os trabalhadores e os “selvagens primitivos” (africanos e índios). Formam a minoria. Como há outros grupos cujos direitos não são reconhecidos (por exemplo, os homossexuais), fala-se em “minorias”. A “maioridade” liberal refere-se, pois, ao homem adulto branco proprietário ou profissional liberal.

0 Response to "A criação de direitos"