Comunismo ou socialismo científico
Crítico não só do Estado
liberal, mas também do socialismo utópico e do anarquismo. Encontra-se
desenvolvido nas obras de Marx e Engels.
A perspectiva marxista
Com a obra de Marx, estamos
colocados diante de um acontecimento comparável apenas ao de Maquiavel. Embora
suas teorias sejam completamente diferentes, pois respondem a experiências
históricas e a problemas diferentes, ambos representam uma mudança decisiva no
modo de conceber a política e a relação entre sociedade e poder. Maquiavel
desmistificou a teologia política e o republicanismo italiano, que simplesmente
pretendia imitar gregos e romanos. Marx desmistificou a política liberal.
Marx parte da crítica da
economia política.
A expressão economia política é curiosa. Com efeito, a palavra economia vem do grego, oikonomia, composta de dois vocábulos, oikos e nomos. Oikos é a casa ou
família, entendida como unidade de produção (agricultura, pastoreio,
edificações, artesanato, trocas de bens entre famílias ou trocas de bens por
moeda, etc.). Nomos significa regra,
acordo convencionado entre seres humanos e por eles respeitado nas relações
sociais. Oikonomia é, portanto, o
conjunto de normas de administração da propriedade patrimonial ou privada,
dirigida pelo chefe da família, o despotes.
Vimos que os gregos inventaram a
política porque separaram o espaço privado – a oikonomia – e o espaço público das leis e do direito – a polis. Como, então, falar em “economia
política”? Os dois termos não se excluem reciprocamente?
A crítica da economia política consiste, justamente, em mostrar que,
apesar das afirmações greco-romanas e liberais de separação entre a esfera
privada da propriedade e a esfera pública do poder, a política jamais conseguiu
realizar a diferença entre ambas. Nem poderia. O poder político sempre foi a
maneira legal e jurídica pela qual a classe economicamente dominante de uma
sociedade manteve seu domínio. O aparato legal e jurídico apenas dissimula o
essencial: que o poder político existe como poderio dos economicamente
poderosos, para servir seus interesses e privilégios e garantir-lhes a
dominação social. Divididas entre proprietários e não-proprietários
(trabalhadores livres, escravos, servos), as sociedades jamais foram
comunidades de iguais e jamais permitiram que o poder político fosse
compartilhado com os não-proprietários.
Por que a expressão economia política tornou-se possível na
modernidade e, doravante, visível? Porque a ideia moderna liberal de sociedade
civil tornou explícita a significação da economia política, ainda que a
ideologia liberal exista para esconder tal fato.
De fato, a economia política
surge como ciência no final do século XVIII e início do século XIX, na França e
na Inglaterra, para combater as limitações que o Antigo Regime impunha ao
capitalismo. As restrições econômicas próprias da sociedade feudal e o controle
da atividade mercantil pelo Estado monárquico eram vistos como prejudiciais ao
desenvolvimento da “riqueza das nações”. Baseando-se nos mesmos princípios que
criaram o liberalismo político, a economia política é elaborada como
liberalismo econômico.
Diferentemente dos gregos, que
definiram o homem como animal político, e diferentemente dos medievais, que
definiram o homem como ser sociável, a economia política define o homem como indivíduo que busca a satisfação de
suas necessidades, consumindo o que a Natureza lhe oferece ou trabalhando para
obter riquezas e bem-estar. Por ser mais vantajosa aos indivíduos a vida em
comum, pactuam para criar a sociedade e o Estado.
As ideias de Estado, de Natureza
e de direito natural conduziram a duas noções essenciais à economia política: a
primeira é a noção de ordem natural racional, que garante a todos os indivíduos
a satisfação de suas necessidades e seu bem-estar; a segunda é a noção de que,
seja por bondade natural, seja por egoísmo, os homens agem em seu próprio
benefício e interesse e, assim fazendo, contribuem para o bem coletivo ou
social. A propriedade privada é natural e útil socialmente, além de legítima
moralmente, porque estimula o trabalho e combate o vício da preguiça.
A economia política buscará as
leis dos fenômenos econômicos na natureza humana e os efeitos das causas
econômicas sobre a vida social. Visto que a ordem natural é racional e que os
seres humanos possuem liberdade natural, a economia política deverá garantir
que a racionalidade natural e a liberdade humana se realizem por si mesmas, sem
entraves e sem limites.
Para alguns economistas
políticos, como Adam Smith, a concorrência (ou lei econômica da oferta e da
procura) é responsável pela riqueza social e pela harmonia entre interesse privado
e interesse coletivo. Para outros, como David Ricardo, as leis econômicas
revelam antagonismos entre os vários interesses dos grupos sociais. Assim, por
exemplo, a diferença entre o preço das mercadorias e os salários indica uma
oposição de interesses na sociedade, de modo que a concorrência exprime esses
conflitos sociais. Em ambos os casos, porém, a economia se realiza como
sociedade civil capaz de se autoregular, sem que o Estado deva interferir na
sua liberdade. Donde o liberalismo econômico fundando o liberalismo político.
Marx indaga: O que é a sociedade
civil? E responde: Não é a manifestação de uma ordem natural racional nem o
aglomerado conflitante de indivíduos, famílias, grupos e corporações, cujos
interesses antagônicos serão conciliados pelo contrato social, que instituiria
a ação reguladora e ordenadora do Estado, expressão do interesse e da vontade
gerais. A sociedade civil é o sistema de relações sociais que organiza a
produção econômica (agricultura, indústria e comércio), realizando-se através
de instituições sociais encarregadas de reproduzi-lo (família, igrejas,
escolas, polícia, partidos políticos, meios de comunicação, etc.). É o espaço
onde as relações sociais e suas formas econômicas e institucionais são
pensadas, interpretadas e representadas por um conjunto de ideias morais,
religiosas, jurídicas, pedagógicas, artísticas, científico-filosóficas e
políticas.
A sociedade civil é o processo
de constituição e reposição das condições materiais da produção econômica pelas
quais são engendradas as classes sociais: os proprietários privados dos meios
de produção e os trabalhadores ou não-proprietários, que vendem sua força de
trabalho como mercadoria submetida à lei da oferta e da procura no mercado de
mão-de-obra. Essas classes sociais são antagônicas e seus conflitos revelam uma
contradição profunda entre os interesses irreconciliáveis de cada uma delas,
isto é, a sociedade civil se realiza como luta
de classes.
Sem dúvida, os liberais estão
certos quando afirmam que a sociedade civil, por ser esfera econômica, é a
esfera dos interesses privados, pois é exatamente isso o que ela é. O que é,
porém, o Estado?
Longe de diferenciar-se da
sociedade civil e de separar-se dela, longe de ser a expressão da vontade geral
e do interesse geral, o Estado é a expressão legal – jurídica e policial – dos
interesses de uma classe social particular, a classe dos proprietários privados
dos meios de produção ou classe dominante. E o Estado não é uma imposição
divina aos homens, nem é o resultado de um pacto ou contrato social, mas é a
maneira pela qual a classe dominante de uma época e de uma sociedade
determinadas garante seus interesses e sua dominação sobre o todo social.
O Estado é a expressão política
da luta econômico-social das classes, amortecida pelo aparato da ordem (jurídica) e da força pública (policial e militar). Não
é, mas aparece como um poder público distante e separado da sociedade
civil. Não por acaso, o liberalismo define o Estado como garantidor do direito
de propriedade privada e, não por acaso, reduz a cidadania aos direitos dos
proprietários privados (vimos que a ampliação da cidadania foi fruto de lutas
populares contra as ideias e práticas liberais).
A economia, portanto, jamais
deixou de ser política. Simplesmente, no capitalismo, o vínculo interno e
necessário entre economia e política tornou-se evidente.
No entanto, se perguntarmos às
pessoas que vivem no Estado liberal capitalista se, para elas, é evidente tal
vínculo, certamente dirão que não. Por que o vínculo interno entre o poder econômico
e o poder político permanece invisível aos olhos da maioria?
Marx faz duas indagações:
1. Como surgiu o Estado? Isto é,
como os homens passaram da submissão ao poder pessoal visível de um senhor à
obediência ao poder impessoal invisível de um Estado?
2. Por que o vínculo entre o
poder econômico e o poder político não é percebido pela sociedade e, sobretudo,
por que não é percebido pelos que não têm poder econômico nem político?
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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