O totalitarismo stalinista
Embora o totalitarismo russo
esteja ligado indissoluvelmente ao nome de Stalin, isso não significa que tenha
terminado com sua morte.
Até a chamada glasnost (transparência), proposta nos
anos 80 por Gorbatchev, existiu o stalinismo sem Stalin, ou seja, o
totalitarismo.
Muitos traços do stalinismo são
semelhantes aos do nazi-fascismo (centralização estatal, partido único com
controle total sobre a sociedade, militarização, nacionalismo, imperialismo,
censura do pensamento e da expressão, propaganda estatal no lugar da informação,
campos de concentração, invenção contínua dos “inimigos internos”), mas a
diferença fundamental e trágica entre eles está no fato de que o stalinismo
sufocou a primeira revolução proletária e deformou profundamente o marxismo,
marcando com o selo totalitário os partidos comunistas do mundo inteiro.
As grandes teses de Marx foram
destruídas pelas teses stalinistas:
● à tese marxista da revolução proletária mundial, o stalinismo contrapôs a
tese do socialismo num só país, transformando-a em diretriz obrigatória para os
partidos comunistas do mundo inteiro. Isso significou que tais partidos
deveriam abandonar práticas revolucionárias em seus países, para não prejudicar
as relações internacionais da União Soviética. Eram estimuladas, porém, as
guerras de libertação nacional contra os países colonialistas sempre que isso
fosse do interesse econômico e geopolítico da Rússia;
● à tese marxista da ditadura do proletariado para a derrubada do Estado, o
stalinismo contrapôs a ditadura do partido único e do Estado forte;
● à tese marxista da abolição do Estado na sociedade comunista sem classes
sociais, contrapôs o agigantamento do Estado, a absorção da sociedade pelo
aparelho estatal e pelos órgãos do partido, cuja burocracia constituiu-se numa
nova classe dominante, com interesses e privilégios próprios;
● à tese marxista da luta proletária contra a burguesia e a pequena
burguesia, bem como à afirmação de que, em muitos processos revolucionários,
parte da burguesia e da pequena burguesia se aliam ao proletariado, mas o
abandonam a partir de certo ponto, devendo ele prosseguir sozinho na ação
revolucionária, o stalinismo contrapôs a tese oportunista da “estratégia” e da
“tática”, segundo a qual, em certos casos, o proletariado faria alianças e
nelas permaneceria e, em outros, não faria aliança alguma, se isso não fosse do
interesse da vanguarda partidária;
● à tese marxista do internacionalismo proletário (“Proletários de todos os
países, uni-vos”, dizia o Manifesto
comunista), contrapôs o nacionalismo e o imperialismo russos, primeiro
invadindo e dominando a Europa Oriental, e depois os países asiáticos não
dominados pela China;
● à tese marxista do partido político como instrumento de organização da
classe trabalhadora e expressão prática de suas ideias e lutas, contrapôs a
burocracia partidária como vanguarda política, que não só “representa” os
interesses proletários, mas os encarna e os dirige, pois é detentora do poder e
do saber;
● à tese marxista da relação indissolúvel entre as ideias e as condições
materiais, isto é, entre teoria e prática, que permitia o desenvolvimento da
consciência crítica da classe trabalhadora, contrapôs a propaganda estatal, a
ideologia do chefe como “pai dos povos”, o controle da educação e dos meios de
comunicação pelo partido e pelo Estado;
● à tese de Marx de que a teoria e a prática estão numa relação dialética,
que o conhecimento é histórico e um processo interminável de análise e
compreensão das condições concretas postas pela realidade social, o stalinismo
contrapôs uma invenção, o Diamat
(materialismo dialético), isto é, o marxismo como doutrina a–histórica, fixada em dogmas expostos sob a forma de
catecismos de vulgarização da ideologia stalinista. Foi tão longe nisso, que
considerou função do Estado definir o pensamento
correto.
Para tanto, os intelectuais do partido foram encarregados de determinar as
linhas “corretas” para a Filosofia, as ciências e as artes. Instituiu-se a
psicologia oficial, a medicina e a genética oficiais, a literatura, a pintura,
a música e o cinema oficiais, a filosofia e a ciência oficiais, encarregando-se
a polícia secreta de queimar obras, prender, torturar, assassinar ou enviar
para campos de concentração os “dissidentes” ou “desviantes”. Os herdeiros de
Stalin foram mais longe: consideravam que, como o partido e o Estado dizem a
verdade absoluta, os “desvios” intelectuais, artísticos e políticos eram
sintomas de distúrbios psíquicos e de loucura, enviando os “dissidentes” para
hospitais psiquiátricos;
● à tese marxista de que a classe trabalhadora é sujeito de sua própria
história quando toma consciência de sua situação e luta contra ela, aprendendo
com a memória dos combates e a tradição das derrotas, o stalinismo contrapôs a
ideia de história oficial da classe proletária, identificada com a história do
partido comunista e com a interpretação dada por este último aos acontecimentos
históricos, roubando assim dos trabalhadores o direito à memória;
● à tese marxista de que os inimigos da classe trabalhadora não são
indivíduos dessa ou daquela classe, mas uma outra classe social enquanto
classe, contrapôs a ideia de “inimigos do povo saídos do seio do próprio povo”
como inimigos de sua própria classe, porque são “agentes estrangeiros
infiltrados no seio do povo uno, indiviso, bom e homogêneo”;
● à tese de Marx da nova sociedade como concretização da liberdade, da
igualdade, da abundância, da justiça e da felicidade, o stalinismo contrapôs o
“operário-modelo” e o “militante exemplar”, acostumados à obediência cega aos
comandos do Estado e do partido e à hierarquia social imposta por eles. Viver
pelo e para o Estado e o partido tornaram-se sinônimos de felicidade, liberdade
e justiça.
A transformação das ideias e práticas stalinistas em instituições sociais fez com que o stalinismo não fosse um
acontecimento de superfície, que pudesse ser apagado com a morte de Stalin.
Pelo contrário. Foi instituída uma nova formação
social, que modelou corpos, corações e mentes e que só desapareceu,
parcialmente, no fim dos anos 80 e inícios dos 90, porque a crise econômica,
provocada pelo delírio armamentista, fez emergirem contradições sufocadas
durante 70 anos.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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