"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Antecedentes da teoria marxista


Antes de examinarmos as respostas de Marx a essas indagações, devemos lembrar um conjunto de ideias e de fatos, existentes quando ele iniciou seu trabalho teórico.
Do ponto de vista dos fatos, estamos na era do desenvolvimento do capitalismo industrial, com a ampliação da capacidade tecnológica de domínio da Natureza pelo trabalho e pela técnica. Essa ampliação aumenta também o campo de ação do capital, que passa a absorver contingentes cada vez maiores de pessoas no mercado da mão-de-obra e do consumo, rumando para o mercado capitalista mundial.
A burguesia se organiza através do Estado liberal, enquanto os trabalhadores industriais ou proletários se organizam em associações profissionais e sindicatos para as lutas econômicas (salários, jornada de trabalho), sociais (condições de vida) e políticas (reivindicação de cidadania). Greves, revoltas e revoluções eclodem em toda a parte, as mais importantes vindo a ocorrer na França em 1830, 1848 e 1871. No Brasil, em 1858, eclode a primeira greve dos trabalhadores e, em 1878, a primeira greve dos trabalhadores do campo, em Amparo (Estado de São Paulo). 

Simultaneamente, consolida-se (em alguns países) ou inicia-se (em outros países) o Estado nacional unificado e centralizado, definido pela unidade territorial e pela identidade de língua, religião, raça e costumes. O capital precisa de suportes territoriais e por isso leva à constituição das nações, forçando, pelas guerras e pelo direito internacional, a delimitação e a garantia de fronteiras e, pelo aparato jurídico, policial e escolar, a unidade de língua, religião e costumes. Em suma, inventa-se a pátria ou nação, sob a forma de Estado nacional. Como se observa, a nação não é natural, nem existe desde sempre, mas foi inventada pelo capitalismo, no século XIX.
Do ponto de vista das ideias, além das teorias liberais e socialistas e da economia política, Hegel propõe uma filosofia política, a filosofia do direito.
Hegel explica a gênese do Estado moderno sem recorrer à teoria do direito natural e do contrato social. O Estado surge como superação nacional das limitações que bloqueavam o desenvolvimento do espírito humano: o isolamento dos indivíduos na família e as lutas dos interesses privados na sociedade civil. O Estado absorve e transforma a família e a sociedade civil numa totalidade racional, mais alta e perfeita, que exprime o interesse e a vontade gerais. Por isso, é a realização mais importante – e a última – da razão na História, uma vez que supera os particularismos numa unidade universal, que, pelo direito, garante a ordem, a paz, a moralidade, a liberdade e a perfeição do espírito humano.
A História é a passagem da família à sociedade civil e desta ao Estado, término do processo histórico. Esse processo é concebido como realização da Cultura, isto é, da diferença e da separação entre Natureza e Espírito e como absorção da primeira pelo segundo. O processo histórico é desenvolvimento da consciência, que se torna cada vez mais consciente de si através das obras espirituais da Cultura, isto é, das ideias que se materializam em instituições sociais, religiosas, artísticas, científico-filosóficas e políticas. O Estado é a síntese final da criação racional ou espiritual, expressão mais alta da Ideia ou do Espírito.
Liberalismo político, liberalismo econômico ou economia política e idealismo político hegeliano formam o pano de fundo do pensamento de Marx, voltado para a compreensão do capitalismo e das lutas proletárias.
Contra o liberalismo político, Marx mostrará que a propriedade privada não é um direito natural e o Estado não é resultado de um contrato social. Contra a economia política, mostrará que a economia não é expressão de uma ordem natural racional. Contra Hegel, mostrará que o Estado não é a Ideia ou o Espírito encarnados no real e que a História não é o movimento da consciência e suas ideias.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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