"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A democracia como ideologia


Dois acontecimentos políticos marcaram o período posterior à Segunda Guerra Mundial: a guerra fria e o surgimento do Estado do Bem-Estar Social (Welfare State).
A guerra fria foi a divisão geopolítica, econômica e militar entre dois grandes blocos: o bloco capitalista, sob a direção dos Estados Unidos, e o bloco comunista, sob a direção da União Soviética e da China. Uma das principais razões para essa divisão foi militar, isto é, a invenção da bomba atômica, que punha fim às guerras convencionais.
Inicialmente, cada bloco julgava que a posse de armamentos nucleares lhe daria mais poder para eliminar o outro. Pouco a pouco, porém, a chamada “corrida armamentista” deixou de visar diretamente à guerra, voltando-se para a intimidação recíproca dos adversários, limitando suas ações imperialistas. Finalmente, percebeu-se que uma guerra não convencional ou nuclear teria resultado zero, ou seja, não teria vencedores, pois o planeta seria inteiramente destruído. Antes, porém, que se chegasse a essa conclusão, a guerra fria definiu o alinhamento político e econômico de todos os países à volta dos dois blocos hegemônicos.  

O Estado do Bem-Estar Social (Welfare State) foi implantado nos países capitalistas avançados do hemisfério norte como defesa do capitalismo contra o perigo do retorno do nazi-fascismo e da revolução comunista. A crise econômica gerada pela guerra, as críticas nazi-fascista e socialista ao liberalismo, a imagem da sociedade socialista em construção na União Soviética e na China, fazendo com que os trabalhadores encontrassem nelas (ignorando o que ali realmente se passava) um contraponto para as desigualdades e injustiças do capitalismo, tudo isso levou a prática política a afirmar a necessidade de alterar a ação do Estado, corrigindo os problemas econômicos e sociais.
O Estado passa a intervir na economia, investindo em indústrias estatais, subsidiando empresas privadas na indústria, na agricultura e no comércio, exercendo controle sobre preços, salários e taxas de juros. Assume para si um conjunto de encargos sociais ou serviços públicos sociais: saúde, educação, moradia, transporte, previdência social, seguro-desemprego. Atende demandas de cidadania política, como o sufrágio universal.
Sob os efeitos da guerra fria e do Estado do Bem-Estar Social, o bloco capitalista procurou impedir, nos países economicamente subdesenvolvidos ou do Terceiro Mundo (América Latina, África, Oriente Médio), rebeliões populares que desembocassem em revoluções socialistas. O perigo existe por dois motivos principais: ou porque os países do Terceiro Mundo são colônias dos países capitalistas, ou porque neles a desigualdade econômico-social, a miséria e as injustiças são de tal monta que, nas colônias, guerras de libertação nacional e, nos demais países, rebeliões populares podem acontecer a qualquer momento e transformar-se em revoluções. O caso de Cuba, em 1958, evidenciou essa possibilidade.
Os países mais fortes do bloco capitalista adotaram duas medidas: através do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), fizeram empréstimos aos Estados do Terceiro Mundo para investir nos serviços sociais e em empresas estatais; e, através dos serviços de espionagem e das forças armadas, ofereceram “ajuda” militar para reprimir revoltas e revoluções. Com isso, estimularam, sobretudo a partir dos anos 60, a proliferação de ditaduras militares e regimes autoritários no Terceiro Mundo, como foi o caso do Brasil.
No centro do discurso político capitalista encontra-se a defesa da democracia.
Vimos que as formações sociais totalitárias cresceram à sombra da crítica à democracia liberal, considerada responsável pela desordem e caos sócio-econômicos, porque abandona a sociedade à cobiça ilimitada dos ricos e poderosos. A democracia é o mal.
Por seu turno, na luta contra os totalitarismos, os Estados capitalistas afirmaram tratar-se do combate entre a opressão e a liberdade, a ditadura e a democracia. A democracia é o bem.
Nos dois casos, a democracia, erguida ora como o mal, ora como o bem, deixava de ser encarada como forma da vida social para tornar-se um tipo de governo e um instrumento ideológico para esconder o que ela é, em nome do que ela “vale”. Tanto assim, que os grandes Estados capitalistas, campeões da democracia, não tiveram dúvida em auxiliar a implantação de regimes autoritários (portanto antidemocráticos) toda vez que lhes pareceu conveniente.
Embora liberalismo e Estado do Bem-Estar Social (ou social-democracia) sejam diferentes quanto à questão dos direitos – o primeiro limita os direitos à cidadania política da classe dominante, o segundo amplia a cidadania política e acolhe a ideia de direitos sociais -, no que tange à democracia são semelhantes. Como a definem? Como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. O que isso quer dizer?
Em primeiro lugar, que identificam liberdade e competição – tanto a competição econômica da chamada “livre iniciativa”, quanto a competição política entre partidos que disputam eleições.
Em segundo lugar, que identificam a lei com a potência judiciária para limitar o poder político, defendendo a sociedade contra a tirania, a lei garantindo os governos escolhidos pela vontade da maioria.
Em terceiro lugar, que identificam a ordem com a potência do executivo e do judiciário para conter e limitar os conflitos sociais, impedindo o desenvolvimento da luta de classes, seja pela repressão, seja pelo atendimento das demandas por direitos sociais (emprego, boas condições de trabalho e salário, educação, moradia, saúde, transporte, lazer).
Em quarto lugar, que, embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia. Em outras palavras, defendem a democracia porque lhes parece um regime favorável à apatia política – a política seria assunto dos representantes, que são políticos profissionais -, que, por seu turno, favorece a formação de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado, evitando, dessa maneira, uma participação política que traria à cena os “extremistas” e “radicais” da sociedade.
A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na ideia de cidadania organizada em partidos políticos e manifestando-se no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas (e não políticas) para os problemas sociais.
Vista por esse prisma, é realmente uma ideologia política e justifica a crítica que lhe dirigiu Marx ao referir-se ao formalismo jurídico que preside a ideia de direitos do cidadão. Em outras palavras, desde a Revolução Francesa de 1789, essa democracia declara os direitos universais do homem e do cidadão, mas a sociedade está estruturada de tal maneira que tais direitos não podem existir concretamente para a maioria da população. A democracia é formal, não é concreta.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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