Os obstáculos à democracia
Liberdade, igualdade e
participação conduziriam à célebre formulação da política democrática como
“governo do povo, pelo povo e para o povo”. Entretanto, o povo da sociedade
democrática está dividido em classes sociais – sejam os ricos e os pobres
(Aristóteles), os grandes e o povo (Maquiavel), as classes sociais antagônicas
(Marx).
É verdade que a sociedade
democrática é aquela que não esconde suas divisões, mas procura trabalhá-las
pelas instituições e pelas leis. Todavia, no capitalismo, são imensos os
obstáculos à democracia, pois o conflito dos interesses é posto pela exploração
de uma classe social por outra, mesmo que a ideologia afirme que todos são
livres e iguais.
É verdade que as lutas populares
nos países de capitalismo avançado ampliaram os direitos e que a exploração dos
trabalhadores diminuiu muito, sobretudo com o Estado do Bem-Estar Social. No
entanto, houve um preço a pagar: a exploração mais violenta do trabalho pelo
capital recaiu sobre as costas dos trabalhadores nos países do Terceiro Mundo.
Houve uma divisão internacional
do trabalho e da exploração que, ao melhorar a igualdade e a liberdade dos
trabalhadores de uma parte do mundo, agravou as condições de vida e de trabalho
da outra parte. E não foi por acaso que, enquanto nos países capitalistas
avançados cresciam o Estado de Bem-Estar e a democracia social, no Terceiro
Mundo eram implantadas ditaduras e regimes autoritários, com os quais os
capitalistas desses países se aliavam aos das grandes potências econômicas.
A situação do direito de
igualdade e de liberdade é também muito frágil nos dias atuais, porque o modo
de produção capitalista passa por uma mudança profunda para resolver a recessão
mundial. Essa mudança, conhecida com o nome de neoliberalismo, implicou o
abandono da política do Estado do Bem-Estar Social (políticas de garantia dos
direitos sociais) e o retorno à ideia liberal de autocontrole da economia pelo
mercado capitalista, afastando, portanto, a interferência do Estado no
planejamento econômico.
O abandono das políticas sociais
chama-se privatização, e o do
planejamento econômico, resregulação.
Ambas significam: o capital é racional e pode, por si mesmo, resolver os
problemas econômicos e sociais. Além disso, o desenvolvimento espantoso das
novas tecnologias eletrônicas trouxe a velocidade da comunicação e da
informação e a automação da produção e distribuição dos produtos.
Essa mudança nas forças produtivas
(pois a tecnologia alterou o processo social do trabalho) vem causando o
desemprego em massa nos países de capitalismo avançado, movimentos racistas
contra imigrantes e migrantes, exclusão social, política e cultural de grandes
massas da população. Esse fenômeno começa também a atingir alguns países do
Terceiro Mundo, como o Brasil.
Em outras palavras, os direitos
econômicos e sociais conquistados pelas lutas populares estão em perigo porque
o capitalismo está passando por uma mudança profunda. De fato,
tradicionalmente, o capital se acumulava, se ampliava e se reproduzia pela
absorção crescente de pessoas no mercado de mão-de-obra (ou mercado de
trabalho) e no mercado de consumo dos produtos. Hoje, porém, com a presença da
tecnologia de ponta como força produtiva, o capital pode acumular-se e
reproduzir-se excluindo cada vez mais as pessoas do mercado de trabalho e de
consumo. Não precisa mais de grandes massas trabalhadoras e consumidoras, pode
ampliar-se graças ao desemprego em massa e não precisa preocupar-se em garantir
direitos econômicos e sociais aos trabalhadores porque não necessita de seus
trabalhos e serviços. Por isso o Estado do Bem-Estar Social tende a ser
suprimido pelo Estado neoliberal, defensor da privatização das políticas
sociais (educação, saúde, transporte, moradia, alimentação).
O direito à participação
política também encontra obstáculos. De fato, no capitalismo da segunda metade
do século XX, a organização industrial do trabalho foi feita a partir de uma
divisão social nova: a separação entre dirigentes e executantes. Os primeiros
são os que recebem a educação científica e tecnológica, são considerados
portadores de saberes que os tornam competentes e por isso com poder de mando.
Os executantes são aqueles que não possuem conhecimentos tecnológicos e
científicos, mas sabem apenas executar tarefas, sem conhecer as razões e as
finalidades de sua ação. São por isso considerados incompetentes e destinados a
obedecer.
Essa forma de organização da
divisão social do trabalho propagou-se para a sociedade inteira. No comércio,
na agricultura, nas escolas, nos hospitais, nas universidades, nos serviços
públicos, nas artes, todos estão separados entre “competentes” que sabem e
“incompetentes” que executam. Em outras palavras, a posse de certos
conhecimentos específicos tornou-se um poder para mandar e decidir.
Essa divisão social converteu-se
numa ideologia: a ideologia da
competência técnico-científica, isto é, na ideia de que quem possui
conhecimentos está naturalmente dotado de poder de mando e direção. Essa
ideologia, fortalecida pelos meios de comunicação de massa que a estimula
diariamente, invadiu a política: esta passou a ser considerada uma atividade
reservada para administradores políticos competentes e não uma ação coletiva de
todos os cidadãos.
Não só o direito à representação
política (ser representante) diminui porque se restringe aos competentes, como
ainda a ideologia da competência oculta e dissimula o fato de que, para ser
“competente”, é preciso ter recursos econômicos para estudar e adquirir
conhecimentos. Em outras palavras, os “competentes” pertencem à classe
economicamente dominante, que, assim, dirige a política segundo seus interesses
e não de acordo com a universalidade dos direitos.
Um outro obstáculo ao direito à
participação política é posto pelos meios de comunicação de massa. Só podemos
participar de discussões e decisões políticas se possuirmos informações
corretas sobre aquilo que vamos discutir e decidir. Ora, como já vimos, os
meios de comunicação de massa não informam, desinformam. Ou melhor, transmitem
as informações de acordo com os interesses de seus proprietários e das alianças
econômicas e políticas destes com grupos detentores de poder econômico e
político. Assim, por não haver respeito ao direito de informação, não há como
respeitar o direito à verdadeira participação política.
Os obstáculos à democracia não
inviabilizam a sociedade democrática. Pelo contrário. Somente nela somos
capazes de perceber tais obstáculos e lutar contra eles.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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