"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Os obstáculos à democracia


Liberdade, igualdade e participação conduziriam à célebre formulação da política democrática como “governo do povo, pelo povo e para o povo”. Entretanto, o povo da sociedade democrática está dividido em classes sociais – sejam os ricos e os pobres (Aristóteles), os grandes e o povo (Maquiavel), as classes sociais antagônicas (Marx).
É verdade que a sociedade democrática é aquela que não esconde suas divisões, mas procura trabalhá-las pelas instituições e pelas leis. Todavia, no capitalismo, são imensos os obstáculos à democracia, pois o conflito dos interesses é posto pela exploração de uma classe social por outra, mesmo que a ideologia afirme que todos são livres e iguais.
É verdade que as lutas populares nos países de capitalismo avançado ampliaram os direitos e que a exploração dos trabalhadores diminuiu muito, sobretudo com o Estado do Bem-Estar Social. No entanto, houve um preço a pagar: a exploração mais violenta do trabalho pelo capital recaiu sobre as costas dos trabalhadores nos países do Terceiro Mundo.  

Houve uma divisão internacional do trabalho e da exploração que, ao melhorar a igualdade e a liberdade dos trabalhadores de uma parte do mundo, agravou as condições de vida e de trabalho da outra parte. E não foi por acaso que, enquanto nos países capitalistas avançados cresciam o Estado de Bem-Estar e a democracia social, no Terceiro Mundo eram implantadas ditaduras e regimes autoritários, com os quais os capitalistas desses países se aliavam aos das grandes potências econômicas.
A situação do direito de igualdade e de liberdade é também muito frágil nos dias atuais, porque o modo de produção capitalista passa por uma mudança profunda para resolver a recessão mundial. Essa mudança, conhecida com o nome de neoliberalismo, implicou o abandono da política do Estado do Bem-Estar Social (políticas de garantia dos direitos sociais) e o retorno à ideia liberal de autocontrole da economia pelo mercado capitalista, afastando, portanto, a interferência do Estado no planejamento econômico.
O abandono das políticas sociais chama-se privatização, e o do planejamento econômico, resregulação. Ambas significam: o capital é racional e pode, por si mesmo, resolver os problemas econômicos e sociais. Além disso, o desenvolvimento espantoso das novas tecnologias eletrônicas trouxe a velocidade da comunicação e da informação e a automação da produção e distribuição dos produtos.
Essa mudança nas forças produtivas (pois a tecnologia alterou o processo social do trabalho) vem causando o desemprego em massa nos países de capitalismo avançado, movimentos racistas contra imigrantes e migrantes, exclusão social, política e cultural de grandes massas da população. Esse fenômeno começa também a atingir alguns países do Terceiro Mundo, como o Brasil.
Em outras palavras, os direitos econômicos e sociais conquistados pelas lutas populares estão em perigo porque o capitalismo está passando por uma mudança profunda. De fato, tradicionalmente, o capital se acumulava, se ampliava e se reproduzia pela absorção crescente de pessoas no mercado de mão-de-obra (ou mercado de trabalho) e no mercado de consumo dos produtos. Hoje, porém, com a presença da tecnologia de ponta como força produtiva, o capital pode acumular-se e reproduzir-se excluindo cada vez mais as pessoas do mercado de trabalho e de consumo. Não precisa mais de grandes massas trabalhadoras e consumidoras, pode ampliar-se graças ao desemprego em massa e não precisa preocupar-se em garantir direitos econômicos e sociais aos trabalhadores porque não necessita de seus trabalhos e serviços. Por isso o Estado do Bem-Estar Social tende a ser suprimido pelo Estado neoliberal, defensor da privatização das políticas sociais (educação, saúde, transporte, moradia, alimentação).
O direito à participação política também encontra obstáculos. De fato, no capitalismo da segunda metade do século XX, a organização industrial do trabalho foi feita a partir de uma divisão social nova: a separação entre dirigentes e executantes. Os primeiros são os que recebem a educação científica e tecnológica, são considerados portadores de saberes que os tornam competentes e por isso com poder de mando. Os executantes são aqueles que não possuem conhecimentos tecnológicos e científicos, mas sabem apenas executar tarefas, sem conhecer as razões e as finalidades de sua ação. São por isso considerados incompetentes e destinados a obedecer.
Essa forma de organização da divisão social do trabalho propagou-se para a sociedade inteira. No comércio, na agricultura, nas escolas, nos hospitais, nas universidades, nos serviços públicos, nas artes, todos estão separados entre “competentes” que sabem e “incompetentes” que executam. Em outras palavras, a posse de certos conhecimentos específicos tornou-se um poder para mandar e decidir.
Essa divisão social converteu-se numa ideologia: a ideologia da competência técnico-científica, isto é, na ideia de que quem possui conhecimentos está naturalmente dotado de poder de mando e direção. Essa ideologia, fortalecida pelos meios de comunicação de massa que a estimula diariamente, invadiu a política: esta passou a ser considerada uma atividade reservada para administradores políticos competentes e não uma ação coletiva de todos os cidadãos.
Não só o direito à representação política (ser representante) diminui porque se restringe aos competentes, como ainda a ideologia da competência oculta e dissimula o fato de que, para ser “competente”, é preciso ter recursos econômicos para estudar e adquirir conhecimentos. Em outras palavras, os “competentes” pertencem à classe economicamente dominante, que, assim, dirige a política segundo seus interesses e não de acordo com a universalidade dos direitos.
Um outro obstáculo ao direito à participação política é posto pelos meios de comunicação de massa. Só podemos participar de discussões e decisões políticas se possuirmos informações corretas sobre aquilo que vamos discutir e decidir. Ora, como já vimos, os meios de comunicação de massa não informam, desinformam. Ou melhor, transmitem as informações de acordo com os interesses de seus proprietários e das alianças econômicas e políticas destes com grupos detentores de poder econômico e político. Assim, por não haver respeito ao direito de informação, não há como respeitar o direito à verdadeira participação política.
Os obstáculos à democracia não inviabilizam a sociedade democrática. Pelo contrário. Somente nela somos capazes de perceber tais obstáculos e lutar contra eles.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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