"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Gênese da sociedade e do Estado


Dissemos acima que Marx indaga como os homens passaram da submissão ao poder pessoal de um senhor à obediência ao poder impessoal do Estado. Para responder a essa questão, é preciso desvendar a gênese do Estado.
Os seres humanos, escrevem Marx e Engels, distinguem-se dos animais não porque sejam dotados de consciência – animais racionais -, nem porque sejam naturalmente sociáveis e políticos – animais políticos -, mas porque são capazes de produzir as condições de sua existência material e intelectual. Os seres humanos são produtores: são o que produzem e são como produzem. A produção das condições materiais e intelectuais da existência não são escolhidas livremente pelos seres humanos, mas estão dadas objetivamente, independentemente de nossa vontade. Eis porque Marx diz que os homens fazem sua própria História, mas não a fazem em condições escolhidas por eles. São historicamente determinados pelas condições em que produzem suas vidas.  

A produção material e intelectual da existência humana depende de condições naturais (as do meio ambiente e as biológicas da espécie humana) e da procriação. Esta não é apenas um dado biológico (a diferença sexual necessária para a reprodução), mas já é social, pois decorre da maneira como se dá o intercâmbio e a cooperação entre os humanos e do modo como é simbolizada psicológica e culturalmente a diferença dos sexos. Por seu turno, a maneira como os humanos interpretam e realizam a diferença sexual determina o modo como farão a divisão social do trabalho, distinguindo trabalhos masculinos, femininos, infantis e de velhice.
A produção e a reprodução das condições de existência se realizam, portanto, através do trabalho (relação com a Natureza), da divisão social do trabalho (intercâmbio e cooperação), da procriação (sexualidade e instituição da família) e do modo de apropriação da Natureza (a propriedade).
Esse conjunto de condições forma, em cada época, a sociedade e o sistema das formas produtivas que a regulam, segundo a divisão social do trabalho. Essa divisão, que começa na família, com a diferença sexual das tarefas, prossegue na distinção entre agricultura e pastoreio, entre ambas e o comércio, conduzindo à separação entre o campo e a cidade. Em cada uma das distinções operam novas divisões sociais do trabalho.
A divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas, mas a manifestação da existência da propriedade, ou seja, a separação entre as condições e os instrumentos do trabalho e o próprio trabalho, incidindo, a seguir, sobre a forma de distribuição dos produtos do trabalho. A propriedade introduz a existência dos meios de produção (condições e instrumentos de trabalho) como algo diferente das forças produtivas (trabalho).
Analisando as diferentes formas de propriedade, as diferentes formas de relação entre meios de produção e forças produtivas, as diferentes formas de divisão social do trabalho decorrentes das formas de propriedade e das relações entre os meios de produção e as forças produtivas, é possível perceber a seqüência do processo histórico e as diferentes modalidades de sociedade.
A propriedade começa como propriedade tribal e a sociedade tem a forma de uma comunidade baseada na família (a comunidade é vista como a família ampliada à qual pertencem todos os membros do grupo). Nela prevalece a hierarquia definida por tarefas, funções, poderes e consumo. Essa forma da propriedade se transforma numa outra, a propriedade estatal, ou seja, propriedade do Estado, cujo dirigente determina o modo de relações dos sujeitos com ela: em certos casos (como na Índia, na China, na Pérsia) o Estado é o proprietário único e permite as atividades econômicas mediante pagamento de tributos, impostos e taxas; em outros casos (Grécia, Roma), o Estado cede, mediante certas regras, a propriedade às grandes famílias, que se tornam proprietárias privadas.
A sociedade se divide, agora, entre senhores e escravos. Nos grandes impérios orientais, os senhores se ocupam da guerra e da religião; na Grécia e em Roma, tornam-se cidadãos e ocupam-se da política, além de possuírem privilégios militares e religiosos; vivem nas cidades e em luta permanente com os que permaneceram no campo, bem como com os homens livres que trabalham nas atividades urbanas (artesanato e comércio) e com os escravos (do campo e da cidade).
A terceira forma de propriedade é a feudal, apresentando-se como propriedade privada da terra pelos senhores e propriedade dos instrumentos de trabalho pelos artesãos livres, membros das corporações dos burgos. A terra é trabalhada por servos da gleba e a sociedade se estrutura pela divisão entre nobreza fundiária e servos (no campo) e artesãos livres e aprendizes (na cidade). Entre elas surge uma figura intermediária: o comerciante. As lutas entre comerciantes e nobres, o desenvolvimento dos burgos, do artesanato e da atividade comercial conduzem à mudança que conhecemos: a propriedade privada capitalista.
Essa nova forma de propriedade possui características inéditas e é uma verdadeira revolução econômica, porque realiza a separação integral entre proprietários dos meios de produção e forças produtivas, isto é, entre as condições e os instrumentos de trabalho e o próprio trabalho. Os proprietários privados possuem meios, condições e instrumentos do trabalho, possuem o controle da distribuição e do consumo dos produtos. No outro pólo social, encontram-se os trabalhadores como massa de assalariados inteiramente expropriada dos meios de produção, possuindo apenas a força do trabalho, colocada à disposição dos proprietários dos meios de produção, no mercado de compra e venda da mão-de-obra.
Essas diferentes formas da propriedade dos meios de produção e das relações com as forças produtivas ou de determinações sociais decorrentes da divisão social do trabalho constituem os modos de produção.
Marx e Engels observaram que, a cada modo de produção, a consciência dos seres humanos se transforma. Descobriram que essas transformações constituem a maneira como, em cada época, a consciência interpreta, compreende e representa para si mesma o que se passa nas condições materiais de produção e reprodução da existência. Por esse motivo, afirmaram que, ao contrário do que se pensa, não são as ideias humanas que movem a História, mas são as condições históricas que produzem as ideias.
Na obra Contribuição à crítica da economia política, Marx escreve:

O conjunto das relações de produção (que corresponde ao grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais) constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de reprodução de vida material determina o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina sua consciência.

É por afirmar que a sociedade se constitui a partir de condições materiais de produção e da divisão social do trabalho, que as mudanças históricas são determinadas pelas modificações naquelas condições materiais e naquela divisão do trabalho, e que a consciência humana é determinada a pensar as ideias que pensa por causa das condições materiais instituídas pela sociedade, que o pensamento de Marx e Engels é chamado de materialismo histórico.
Materialismo porque somos o que as condições materiais (as relações sociais de produção) nos determinam a ser e a pensar[i]. Histórico porque a sociedade e a política não surgem de decretos divinos nem nascem da ordem natural, mas dependem da ação concreta dos seres humanos no tempo.
A História não é um progresso linear e contínuo, uma seqüência de causas e efeitos, mas um processo de transformações sociais determinadas pelas contradições entre os meios de produção (a forma da propriedade) e as forças produtivas (o trabalho, seus instrumentos, as técnicas). A luta de classes exprime tais contradições e é o motor da História. Por afirmar que o processo histórico é movido por contradições sociais, o materialismo histórico é dialético[ii].
As relações sociais de produção não são responsáveis apenas pela gênese da sociedade, mas também pela do Estado, que Marx designa como superestrutura jurídica e política, correspondente à estrutura econômica da sociedade.
Qual a gênese do Estado? Conflitos entre proprietários privados dos meios de produção e contradições entre eles e os não-proprietários (escravos, servos, trabalhadores livres). Os conflitos entre proprietários e as contradições entre proprietários e não-proprietários aparecem para a consciência social sob a forma de conflitos e contradições entre interesses particulares e o interesse geral. Aparecem dessa maneira, mas não são realmente como aparecem. Em outras palavras, onde há propriedade privada, há interesse privado e não pode haver interesse coletivo ou geral.
Os proprietários dos meios de produção podem ter interesses comuns, pois necessitam do intercâmbio e da cooperação para manter e fazer crescer a propriedade de cada um. Assim, embora estejam em concorrência e competição, precisam estabelecer certas regras pelas quais não se destruam reciprocamente nem às suas propriedades.
Sabem também que não poderão resolver as contradições com os não-proprietários e que estes podem, por revoltas e revoluções populares, destruir a propriedade privada. É preciso, portanto, que os interesses comuns entre os proprietários dos meios de produção e a força para dominar os não-proprietários sejam estabelecidos de maneira tal que pareçam corretos, legítimos e válidos para todos. Para isso, criam o Estado como poder separado da sociedade, portador do direito e das leis, dotado de força para usar a violência na repressão de tudo quanto pareça perigoso à estrutura econômica existente.
No caso do poder despótico, a legitimação é feita pela divinização do senhor: o detentor do poder (um indivíduo, uma família ou um grupo de famílias) apresenta-se como filho de um humano e de uma divindade, isto é, o nascimento justifica o poderio. No caso do poder teocrático, a legitimação é feita pela sacralização do governante: o detentor do poder o recebe diretamente de Deus. No caso das repúblicas (democracia grega, o senado e o povo romano), a legitimação é feita pela instituição do direito e das leis que definem quem pode ser cidadão e participar do governo.
Nos três casos, a divisão social aparece como hierarquia divina e/ou natural, que justifica a exclusão dos não-proprietários do poder e sobretudo estabelece princípios (divinos ou naturais) para a submissão e a obediência, transformadas em obrigações.
No caso do Estado moderno, como vimos, as ideias de Estado de Natureza, direito natural, contrato social e direito civil fundam o poder político na vontade dos proprietários dos meios de produção, que se apresentam como indivíduos livres e iguais que transferem seus direitos naturais ao poder político, instituindo a autoridade do Estado e das leis.
Eis por que o Estado precisa aparecer como expressão do interesse geral e não como senhorio particular de alguns poderosos. Os não-proprietários podem recusar, como fizeram inúmeras vezes na História, o poder pessoal visível de um senhor, mas não o fazem quando se trata de um poder distante, separado, invisível e impessoal como o do Estado. Julgando que este se encontra a serviço do bem comum, da justiça, da ordem, da lei, da paz e da segurança, aceitam a dominação, pois não a percebem como tal.
Resta a segunda indagação de Marx, qual seja, por que os sujeitos sociais não percebem o vínculo entre o poder econômico e o poder político?

Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.



[i] A noção de materialismo surge, pela primeira vez, na filosofia grega. As escolas filosóficas estóica e epicurista afirmaram, contra Platão, Aristóteles e neoplatônicos, que só existem corpos ou a matéria. Os epicuristas, retomando ideias dos pré-socráticos atomistas (Leucipo e Demócrito), afirmaram que o espírito era átomo material sutil e diáfano. Nos séculos XVII e XVIII, reagindo contra o espiritualismo cristão, muitos filósofos se disseram materialistas, querendo com isto dizer que só existe a Natureza e que esta é matéria (átomos, movimento, massa, figura, etc.). Como vivemos em sociedades cristãs (mesmo que haja outras religiões minoritárias), o materialismo sempre foi considerado blasfêmia e heresia porque nega a existência de puros espíritos, a imortalidade da alma e a separação entre Deus e Natureza. O senso comum social, absorvendo a crítica espiritualista, fala em “materialismo” para referir-se a pessoas que só acreditam nesta vista terrena, egoístas e ambiciosas, sem preocupação com a salvação eterna e com o bem e a salvação do próximo. O “materialista” é o que gosta de prazeres, riquezas e luxo (rigorosamente, portanto, dever-se-ia dizer que os burgueses são “materialistas”, embora se digam cristãos espiritualistas). Quando Marx fala em materialismo, a matéria à qual se refere não são os corpos físicos, os átomos, os seres naturais, e sim as relações sociais de produção econômica. Seu materialismo visa opor-se ao idealismo espiritualista hegeliano, para o qual a força que move a História é a Ideia, o Espírito, a Consciência.
[ii] Ver o que foi examinado sobre a dialética no capítulo 4 da unidade 5.

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