Gênese da sociedade e do Estado
Dissemos acima que Marx indaga
como os homens passaram da submissão ao poder pessoal de um senhor à obediência
ao poder impessoal do Estado. Para responder a essa questão, é preciso
desvendar a gênese do Estado.
Os seres humanos, escrevem Marx
e Engels, distinguem-se dos animais não porque sejam dotados de consciência –
animais racionais -, nem porque sejam naturalmente sociáveis e políticos –
animais políticos -, mas porque são capazes de produzir as condições de sua existência material e intelectual. Os
seres humanos são produtores: são o que produzem e são como produzem. A
produção das condições materiais e intelectuais da existência não são
escolhidas livremente pelos seres humanos, mas estão dadas objetivamente,
independentemente de nossa vontade. Eis porque Marx diz que os homens fazem sua
própria História, mas não a fazem em condições escolhidas por eles. São historicamente determinados pelas
condições em que produzem suas vidas.
A produção material e
intelectual da existência humana depende de condições naturais (as do meio
ambiente e as biológicas da espécie humana) e da procriação. Esta não é apenas
um dado biológico (a diferença sexual necessária para a reprodução), mas já é
social, pois decorre da maneira como se dá o intercâmbio e a cooperação entre
os humanos e do modo como é simbolizada psicológica e culturalmente a diferença
dos sexos. Por seu turno, a maneira como os humanos interpretam e realizam a
diferença sexual determina o modo como farão a divisão social do trabalho,
distinguindo trabalhos masculinos, femininos, infantis e de velhice.
A produção e a reprodução das
condições de existência se realizam, portanto, através do trabalho (relação com
a Natureza), da divisão social do trabalho (intercâmbio e cooperação), da
procriação (sexualidade e instituição da família) e do modo de apropriação da
Natureza (a propriedade).
Esse conjunto de condições
forma, em cada época, a sociedade e o sistema das formas produtivas que a regulam, segundo a divisão social do
trabalho. Essa divisão, que começa na família, com a diferença sexual das
tarefas, prossegue na distinção entre agricultura e pastoreio, entre ambas e o
comércio, conduzindo à separação entre o campo e a cidade. Em cada uma das
distinções operam novas divisões sociais do trabalho.
A divisão social do trabalho não
é uma simples divisão de tarefas, mas a manifestação da existência da propriedade, ou seja, a separação entre
as condições e os instrumentos do trabalho e o próprio trabalho, incidindo, a
seguir, sobre a forma de distribuição dos produtos do trabalho. A propriedade
introduz a existência dos meios de
produção (condições e instrumentos de trabalho) como algo diferente das forças produtivas (trabalho).
Analisando as diferentes formas
de propriedade, as diferentes formas de relação entre meios de produção e
forças produtivas, as diferentes formas de divisão social do trabalho
decorrentes das formas de propriedade e das relações entre os meios de produção
e as forças produtivas, é possível perceber a seqüência do processo histórico e
as diferentes modalidades de sociedade.
A propriedade começa como
propriedade tribal e a sociedade tem a forma de uma comunidade baseada na
família (a comunidade é vista como a família ampliada à qual pertencem todos os
membros do grupo). Nela prevalece a hierarquia definida por tarefas, funções,
poderes e consumo. Essa forma da propriedade se transforma numa outra, a
propriedade estatal, ou seja, propriedade do Estado, cujo dirigente determina o
modo de relações dos sujeitos com ela: em certos casos (como na Índia, na
China, na Pérsia) o Estado é o proprietário único e permite as atividades
econômicas mediante pagamento de tributos, impostos e taxas; em outros casos
(Grécia, Roma), o Estado cede, mediante certas regras, a propriedade às grandes
famílias, que se tornam proprietárias privadas.
A sociedade se divide, agora,
entre senhores e escravos. Nos grandes impérios orientais, os senhores se
ocupam da guerra e da religião; na Grécia e em Roma, tornam-se cidadãos e
ocupam-se da política, além de possuírem privilégios militares e religiosos;
vivem nas cidades e em luta permanente com os que permaneceram no campo, bem
como com os homens livres que trabalham nas atividades urbanas (artesanato e
comércio) e com os escravos (do campo e da cidade).
A terceira forma de propriedade
é a feudal, apresentando-se como propriedade privada da terra pelos senhores e
propriedade dos instrumentos de trabalho pelos artesãos livres, membros das
corporações dos burgos. A terra é trabalhada por servos da gleba e a sociedade
se estrutura pela divisão entre nobreza fundiária e servos (no campo) e
artesãos livres e aprendizes (na cidade). Entre elas surge uma figura
intermediária: o comerciante. As lutas entre comerciantes e nobres, o
desenvolvimento dos burgos, do artesanato e da atividade comercial conduzem à
mudança que conhecemos: a propriedade privada capitalista.
Essa nova forma de propriedade
possui características inéditas e é uma verdadeira revolução econômica, porque
realiza a separação integral entre proprietários dos meios de produção e forças
produtivas, isto é, entre as condições e os instrumentos de trabalho e o
próprio trabalho. Os proprietários privados possuem meios, condições e
instrumentos do trabalho, possuem o controle da distribuição e do consumo dos
produtos. No outro pólo social, encontram-se os trabalhadores como massa de
assalariados inteiramente expropriada dos meios de produção, possuindo apenas a
força do trabalho, colocada à disposição dos proprietários dos meios de
produção, no mercado de compra e venda da mão-de-obra.
Essas diferentes formas da
propriedade dos meios de produção e das relações com as forças produtivas ou de
determinações sociais decorrentes da divisão social do trabalho constituem os modos de produção.
Marx e Engels observaram que, a
cada modo de produção, a consciência dos seres humanos se transforma.
Descobriram que essas transformações constituem a maneira como, em cada época,
a consciência interpreta, compreende e representa para si mesma o que se passa
nas condições materiais de produção e reprodução da existência. Por esse
motivo, afirmaram que, ao contrário do que se pensa, não são as ideias humanas
que movem a História, mas são as condições históricas que produzem as ideias.
Na obra Contribuição à crítica da economia política, Marx escreve:
O conjunto das relações de
produção (que corresponde ao grau de desenvolvimento das forças produtivas
materiais) constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre
a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social. O modo de reprodução de vida
material determina o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em
geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina
sua consciência.
É por afirmar que a sociedade se
constitui a partir de condições materiais de produção e da divisão social do
trabalho, que as mudanças históricas são determinadas pelas modificações
naquelas condições materiais e naquela divisão do trabalho, e que a consciência
humana é determinada a pensar as ideias que pensa por causa das condições
materiais instituídas pela sociedade, que o pensamento de Marx e Engels é
chamado de materialismo histórico.
Materialismo porque somos o que
as condições materiais (as relações
sociais de produção) nos determinam a ser e a pensar[i].
Histórico porque a sociedade e a política não surgem de decretos divinos nem
nascem da ordem natural, mas dependem da ação concreta dos seres humanos no
tempo.
A História não é um progresso
linear e contínuo, uma seqüência de causas e efeitos, mas um processo de
transformações sociais determinadas pelas contradições entre os meios de
produção (a forma da propriedade) e as forças produtivas (o trabalho, seus
instrumentos, as técnicas). A luta de classes exprime tais contradições e é o
motor da História. Por afirmar que o processo histórico é movido por
contradições sociais, o materialismo histórico é dialético[ii].
As relações sociais de produção
não são responsáveis apenas pela gênese da sociedade, mas também pela do
Estado, que Marx designa como superestrutura jurídica e política,
correspondente à estrutura econômica da sociedade.
Qual a gênese do Estado?
Conflitos entre proprietários privados dos meios de produção e contradições
entre eles e os não-proprietários (escravos, servos, trabalhadores livres). Os
conflitos entre proprietários e as contradições entre proprietários e
não-proprietários aparecem para a
consciência social sob a forma de conflitos e contradições entre interesses
particulares e o interesse geral. Aparecem
dessa maneira, mas não são realmente
como aparecem. Em outras palavras, onde há propriedade privada, há interesse
privado e não pode haver interesse coletivo ou geral.
Os proprietários dos meios de
produção podem ter interesses comuns, pois necessitam do intercâmbio e da
cooperação para manter e fazer crescer a propriedade de cada um. Assim, embora
estejam em concorrência e competição, precisam estabelecer certas regras pelas
quais não se destruam reciprocamente nem às suas propriedades.
Sabem também que não poderão
resolver as contradições com os não-proprietários e que estes podem, por
revoltas e revoluções populares, destruir a propriedade privada. É preciso,
portanto, que os interesses comuns entre os proprietários dos meios de produção
e a força para dominar os não-proprietários sejam estabelecidos de maneira tal
que pareçam corretos, legítimos e válidos para todos. Para isso, criam o Estado
como poder separado da sociedade, portador do direito e das leis, dotado de
força para usar a violência na repressão de tudo quanto pareça perigoso à
estrutura econômica existente.
No caso do poder despótico, a
legitimação é feita pela divinização do senhor: o detentor do poder (um
indivíduo, uma família ou um grupo de famílias) apresenta-se como filho de um
humano e de uma divindade, isto é, o nascimento justifica o poderio. No caso do
poder teocrático, a legitimação é feita pela sacralização do governante: o
detentor do poder o recebe diretamente de Deus. No caso das repúblicas
(democracia grega, o senado e o povo romano), a legitimação é feita pela
instituição do direito e das leis que definem quem pode ser cidadão e
participar do governo.
Nos três casos, a divisão social
aparece como hierarquia divina e/ou natural, que justifica a exclusão dos
não-proprietários do poder e sobretudo estabelece princípios (divinos ou
naturais) para a submissão e a obediência, transformadas em obrigações.
No caso do Estado moderno, como
vimos, as ideias de Estado de Natureza, direito natural, contrato social e
direito civil fundam o poder político na vontade dos proprietários dos meios de
produção, que se apresentam como indivíduos livres e iguais que transferem seus
direitos naturais ao poder político, instituindo a autoridade do Estado e das
leis.
Eis por que o Estado precisa aparecer como expressão do interesse
geral e não como senhorio particular de alguns poderosos. Os não-proprietários
podem recusar, como fizeram inúmeras vezes na História, o poder pessoal visível
de um senhor, mas não o fazem quando se trata de um poder distante, separado,
invisível e impessoal como o do Estado. Julgando que este se encontra a serviço
do bem comum, da justiça, da ordem, da lei, da paz e da segurança, aceitam a
dominação, pois não a percebem como tal.
Resta a segunda indagação de
Marx, qual seja, por que os sujeitos sociais não percebem o vínculo entre o
poder econômico e o poder político?
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
[i]
A noção de materialismo surge, pela primeira vez, na filosofia grega. As
escolas filosóficas estóica e epicurista afirmaram, contra Platão, Aristóteles
e neoplatônicos, que só existem corpos ou a matéria. Os epicuristas, retomando
ideias dos pré-socráticos atomistas (Leucipo e Demócrito), afirmaram que o
espírito era átomo material sutil e diáfano. Nos séculos XVII e XVIII, reagindo
contra o espiritualismo cristão, muitos filósofos se disseram materialistas,
querendo com isto dizer que só existe a Natureza e que esta é matéria (átomos,
movimento, massa, figura, etc.). Como vivemos em sociedades cristãs (mesmo que
haja outras religiões minoritárias), o materialismo sempre foi considerado
blasfêmia e heresia porque nega a existência de puros espíritos, a imortalidade
da alma e a separação entre Deus e Natureza. O senso comum social, absorvendo a
crítica espiritualista, fala em “materialismo” para referir-se a pessoas que só
acreditam nesta vista terrena, egoístas e ambiciosas, sem preocupação com a
salvação eterna e com o bem e a salvação do próximo. O “materialista” é o que
gosta de prazeres, riquezas e luxo (rigorosamente, portanto, dever-se-ia dizer
que os burgueses são “materialistas”, embora se digam cristãos
espiritualistas). Quando Marx fala em materialismo, a matéria à qual se refere
não são os corpos físicos, os átomos, os seres naturais, e sim as relações
sociais de produção econômica. Seu materialismo visa opor-se ao idealismo
espiritualista hegeliano, para o qual a força que move a História é a Ideia, o
Espírito, a Consciência.
[ii]
Ver o que foi examinado sobre a dialética no capítulo 4 da unidade 5.
0 Response to "Gênese da sociedade e do Estado"
Postar um comentário