"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A ideologia


Quando citamos o texto da Contribuição à crítica da economia política, vimos que Marx afirma que a consciência humana é sempre social e histórica, isto é, determinada pelas condições concretas de nossa existência.
Isso não significa, porém, que nossas ideias representem a realidade tal como esta é em si mesma. Se assim fosse, seria incompreensível que os seres humanos, conhecendo as causas da exploração, da dominação, da miséria e da injustiça nada fizessem contra elas. Nossas ideias, historicamente determinadas, têm a peculiaridade de nascer a partir de nossa experiência social direta. A marca da experiência social é oferecer-se como uma explicação da aparência das coisas como se esta fosse a essência das próprias coisas.
Não só isso. As aparências – ou o aparecer social à consciência – são aparências justamente porque nos oferecem o mundo de cabeça para baixo: o que é causa parece ser efeito, o que é efeito parece ser causa. Isso não se dá apenas no plano da consciência individual, mas sobretudo no da consciência social, isto é, no conjunto de ideias e explicações que uma sociedade oferece sobre si mesma.  

Feuerbach, como vimos, estudara esse fenômeno na religião, designando-o com o conceito de alienação. Marx interessa-se por esse fenômeno porque o percebeu em outras esferas da vida social, por exemplo, na política, que, como analisamos há pouco, leva os sujeitos sociais a aceitarem a dominação estatal porque não reconhecem quem são os verdadeiros criadores do Estado.
Ele o observou também na esfera da economia: no capitalismo, os trabalhadores produzem todos os objetos existentes no mercado, todas as mercadorias; após havê-las produzido, as entregam aos proprietários dos meios de produção, mediante um salário; quando vão ao mercado não conseguem comprar essas mercadorias. Olham os preços, contam o dinheiro e voltam para casa de mãos vazias, como se o preço das mercadorias existisse por si mesmo e como se elas estivessem à venda porque surgiram do nada e alguém as decidiu vender. Em outras palavras, os trabalhadores não só não se reconhecem como autores ou produtores das mercadorias, mas ainda acreditam que elas valem o preço que custam e que não podem tê-las porque valem mais do que eles. Alienaram nos objetos seu próprio trabalho e não se reconhecem como produtores da riqueza e das coisas.
A inversão entre causa e efeito, princípio e conseqüência, condição e condicionado leva à produção de imagens e ideias que pretendem representar a realidade. As imagens formam um imaginário social invertido – um conjunto de representações sobre os seres humanos e suas relações, sobre as coisas, sobre o bem e o mal, o justo e o injusto, os bons e os maus costumes, etc. Tomadas como ideias, essas imagens ou esse imaginário social constituem a ideologia.
A ideologia é um fenômeno histórico-social decorrente do modo de produção econômico.
À medida que, numa formação social, uma forma determinada da divisão social se estabiliza, se fixa e se repete, cada indivíduo passa a ter uma atividade determinada e exclusiva, que lhe é atribuída pelo conjunto das relações sociais, pelo estágio das forças produtivas e pela forma da propriedade. Cada um, por causa da fixidez e da repetição de seu lugar e de sua atividade, tende a considerá-los naturais (por exemplo, quando alguém julga que faz o que faz porque tem talento ou vocação natural para isso; quando alguém julga que, por natureza, os negros foram feitos para serem escravos; quando alguém julga que, por natureza, as mulheres foram feitas para a maternidade e o trabalho doméstico).
A naturalização surge sob a forma de ideias que afirmam que as coisas são como são porque é natural que assim sejam. As relações sociais passam, portanto, a serem vistas como naturais, existentes em si e por si, e não como resultados da ação humana. A naturalização é maneira pela qual as ideias produzem alienação social, isto é, a sociedade surge como uma força natural estranha e poderosa, que faz com que tudo seja necessariamente como é. Senhores por natureza, escravos por natureza, cidadãos por natureza, proprietários por natureza, assalariados por natureza, etc.
A divisão social do trabalho, iniciada na família, prossegue na sociedade e, à medida que esta se torna mais complexa, leva a uma divisão entre dois tipos fundamentais de trabalho: o trabalho material de produção de coisas e o trabalho intelectual de produção de ideias. No início, essa segunda forma de trabalho social é privilégio dos sacerdotes; depois, torna-se função de professores e escritores, artistas e cientistas, pensadores e filósofos.
Os que produzem ideias separam-se dos que produzem coisas, formando um grupo à parte. Pouco a pouco, à medida que vão ficando cada vez mais distantes e separados dos trabalhadores materiais, os que pensam começam a acreditar que a consciência e o pensamento estão, em si e por si mesmos, separados das coisas materiais, existindo em si e por si mesmos. Passam a acreditar na independência entre a consciência e o mundo material, entre o pensamento e as coisas produzidas socialmente. Conferem autonomia à consciência e às ideias e, finalmente, julgam que as ideias não só explicam a realidade, mas produzem o real. Surge a ideologia como crença na autonomia das ideias e na capacidade de as ideias criarem a realidade.
Ora, o grupo dos que pensam – sacerdotes, professores, artistas, filósofos, cientistas – não nasceu do nada. Nasceu não só da divisão social do trabalho, mas também de uma divisão no interior da classe dos proprietários ou classe dominante de uma sociedade. Como conseqüência, o grupo pensante (os intelectuais) pensa com as ideias dos dominantes; julga, porém, que tais ideias são verdadeiras em si mesmas e transformam ideias de uma classe social determinada em ideias universais e necessárias, válidas para a sociedade inteira.
Como o grupo pensante domina a consciência social, tem o poder de transmitir as ideias dominantes para toda a sociedade, através da religião, das artes, da escola, da ciência, da filosofia, dos costumes, das leis e do direito, moldando a consciência de todas as classes sociais e uniformizando o pensamento de todas as classes.
Os ideólogos são membros da classe dominante e das classes aliadas a ela, que, como intelectuais, sistematizam as imagens e as ideias sociais da classe dominante em representações coletivas, gerais e universais. Essas imagens e ideias não exprimem a realidade social, mas representam a aparência social do ponto de vista dos dominantes. São consideradas realidades autônomas que produzem a realidade material ou social. São imagens e ideias postas como universais abstratos, uma vez que, concretamente, não correspondem à realidade social, dividida em classes sociais antagônicas. Assim, por exemplo, existem na sociedade, concretamente, capitalistas e trabalhadores, mas na ideologia aparece abstratamente o Homem.
A ideologia torna-se propriamente ideologia quando não aparece sob a forma do mito, da religião e da teologia. Com efeito, nestes, a explicação sobre a origem dos seres humanos, da sociedade e do poder político encontra a causa fora e antes dos próprios humanos e de sua ação, localizando a causa originária nas divindades. A ideologia propriamente dita surge quando, no lugar das divindades, encontramos as ideias: o Homem, a Pátria, a Família, a Escola, o Progresso, a Ciência, o Estado, o Bem, o Justo, etc.
Com isso, podemos dizer que a ideologia é um fenômeno moderno, substituindo o papel que, antes dela, tinham os mitos e as teologias. Com a ideologia, a explicação sobre a origem dos homens, da sociedade e da política encontra-se nas ações humanas, entendidas como manifestação da consciência ou das ideias. Assim, por exemplo, julgar que o Estado se origina das ideias de Estado de Natureza, direito natural, contrato social e direito civil é supor que a consciência humana, independentemente das condições históricas materiais, pensou nessas ideias, julgou-as corretas e passou a agir por elas, criando a realidade designada e representada por elas.
Que faz a ideologia? Oferece a uma sociedade dividida em classes sociais antagônicas, e que vivem na forma da luta de classes, uma imagem que permita a unificação e a identificação social – uma língua, uma religião, uma raça, uma nação, uma pátria, um Estado, uma humanidade, mesmos costumes. Assim, a função primordial da ideologia é ocultar a origem da sociedade (relações de produção como relações entre meios de produção e forças produtivas sob a divisão social do trabalho), dissimular a presença da luta de classes (domínio e exploração dos não-proprietários pelos proprietários privados dos meios de produção), negar as desigualdades sociais (são imaginadas como se fossem conseqüência de talentos diferentes, da preguiça ou da disciplina laboriosa) e oferecer a imagem ilusória da comunidade (o Estado) originada do contrato social entre homens livres e iguais. A ideologia é a lógica da dominação social e política.
Porque nascemos e somos criados com essas ideias e nesse imaginário social, não percebemos a verdadeira natureza de classe do Estado. A resposta à segunda pergunta de Marx, qual seja, por que a sociedade não percebe o vínculo interno entre poder econômico e poder político, pode ser respondida agora: por causa da ideologia.

Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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