A ideologia
Quando citamos o texto da Contribuição à crítica da economia política,
vimos que Marx afirma que a consciência humana é sempre social e histórica,
isto é, determinada pelas condições concretas de nossa existência.
Isso não significa, porém, que
nossas ideias representem a realidade tal como esta é em si mesma. Se assim
fosse, seria incompreensível que os seres humanos, conhecendo as causas da
exploração, da dominação, da miséria e da injustiça nada fizessem contra elas.
Nossas ideias, historicamente determinadas, têm a peculiaridade de nascer a
partir de nossa experiência social direta. A marca da experiência social é
oferecer-se como uma explicação da aparência
das coisas como se esta fosse a essência das próprias coisas.
Não só isso. As aparências – ou
o aparecer social à consciência – são aparências justamente porque nos oferecem
o mundo de cabeça para baixo: o que é causa parece ser efeito, o que é efeito
parece ser causa. Isso não se dá apenas no plano da consciência individual, mas
sobretudo no da consciência social, isto é, no conjunto de ideias e explicações
que uma sociedade oferece sobre si mesma.
Feuerbach, como vimos,
estudara esse fenômeno na religião, designando-o com o conceito de alienação.
Marx interessa-se por esse fenômeno porque o percebeu em outras esferas da vida
social, por exemplo, na política, que, como analisamos há pouco, leva os
sujeitos sociais a aceitarem a dominação estatal porque não reconhecem quem são
os verdadeiros criadores do Estado.
Ele o observou também na esfera
da economia: no capitalismo, os trabalhadores produzem todos os objetos
existentes no mercado, todas as mercadorias; após havê-las produzido, as
entregam aos proprietários dos meios de produção, mediante um salário; quando
vão ao mercado não conseguem comprar essas mercadorias. Olham os preços, contam
o dinheiro e voltam para casa de mãos vazias, como se o preço das mercadorias
existisse por si mesmo e como se elas estivessem à venda porque surgiram do
nada e alguém as decidiu vender. Em outras palavras, os trabalhadores não só
não se reconhecem como autores ou produtores das mercadorias, mas ainda
acreditam que elas valem o preço que custam e que não podem tê-las porque valem
mais do que eles. Alienaram nos objetos seu próprio trabalho e não se
reconhecem como produtores da riqueza e das coisas.
A inversão entre causa e efeito,
princípio e conseqüência, condição e condicionado leva à produção de imagens e ideias que pretendem representar a realidade. As imagens formam um
imaginário social invertido – um conjunto de representações sobre os seres
humanos e suas relações, sobre as coisas, sobre o bem e o mal, o justo e o
injusto, os bons e os maus costumes, etc. Tomadas como ideias, essas imagens ou
esse imaginário social constituem a ideologia.
A ideologia é um fenômeno
histórico-social decorrente do modo de produção econômico.
À medida que, numa formação
social, uma forma determinada da divisão social se estabiliza, se fixa e se
repete, cada indivíduo passa a ter uma atividade determinada e exclusiva, que
lhe é atribuída pelo conjunto das relações sociais, pelo estágio das forças
produtivas e pela forma da propriedade. Cada um, por causa da fixidez e da
repetição de seu lugar e de sua atividade, tende a considerá-los naturais (por exemplo, quando alguém
julga que faz o que faz porque tem talento ou vocação natural para isso; quando
alguém julga que, por natureza, os negros foram feitos para serem escravos;
quando alguém julga que, por natureza, as mulheres foram feitas para a
maternidade e o trabalho doméstico).
A naturalização surge sob a
forma de ideias que afirmam que as coisas são como são porque é natural que
assim sejam. As relações sociais passam, portanto, a serem vistas como
naturais, existentes em si e por si, e não como resultados da ação humana. A
naturalização é maneira pela qual as ideias produzem alienação social, isto é,
a sociedade surge como uma força natural estranha e poderosa, que faz com que
tudo seja necessariamente como é. Senhores por natureza, escravos por natureza,
cidadãos por natureza, proprietários por natureza, assalariados por natureza,
etc.
A divisão social do trabalho,
iniciada na família, prossegue na sociedade e, à medida que esta se torna mais
complexa, leva a uma divisão entre dois tipos fundamentais de trabalho: o
trabalho material de produção de coisas e o trabalho intelectual de produção de
ideias. No início, essa segunda forma de trabalho social é privilégio dos
sacerdotes; depois, torna-se função de professores e escritores, artistas e
cientistas, pensadores e filósofos.
Os que produzem ideias
separam-se dos que produzem coisas, formando um grupo à parte. Pouco a pouco, à
medida que vão ficando cada vez mais distantes e separados dos trabalhadores
materiais, os que pensam começam a acreditar que a consciência e o pensamento
estão, em si e por si mesmos, separados das coisas materiais, existindo em si e
por si mesmos. Passam a acreditar na independência entre a consciência e o
mundo material, entre o pensamento e as coisas produzidas socialmente. Conferem
autonomia à consciência e às ideias e, finalmente, julgam que as ideias não só
explicam a realidade, mas produzem o real. Surge a ideologia como crença na
autonomia das ideias e na capacidade de as ideias criarem a realidade.
Ora, o grupo dos que pensam –
sacerdotes, professores, artistas, filósofos, cientistas – não nasceu do nada.
Nasceu não só da divisão social do trabalho, mas também de uma divisão no
interior da classe dos proprietários ou classe dominante de uma sociedade. Como
conseqüência, o grupo pensante (os intelectuais) pensa com as ideias dos
dominantes; julga, porém, que tais ideias são verdadeiras em si mesmas e
transformam ideias de uma classe social determinada em ideias universais e
necessárias, válidas para a sociedade inteira.
Como o grupo pensante domina a
consciência social, tem o poder de transmitir as ideias dominantes para toda a
sociedade, através da religião, das artes, da escola, da ciência, da filosofia,
dos costumes, das leis e do direito, moldando a consciência de todas as classes
sociais e uniformizando o pensamento de todas as classes.
Os ideólogos são membros da
classe dominante e das classes aliadas a ela, que, como intelectuais,
sistematizam as imagens e as ideias sociais da classe dominante em
representações coletivas, gerais e universais. Essas imagens e ideias não
exprimem a realidade social, mas representam a aparência social do ponto de
vista dos dominantes. São consideradas realidades autônomas que produzem a
realidade material ou social. São imagens e ideias postas como universais abstratos, uma vez que,
concretamente, não correspondem à realidade social, dividida em classes sociais
antagônicas. Assim, por exemplo, existem na sociedade, concretamente,
capitalistas e trabalhadores, mas na ideologia aparece abstratamente o Homem.
A ideologia torna-se
propriamente ideologia quando não aparece sob a forma do mito, da religião e da
teologia. Com efeito, nestes, a explicação sobre a origem dos seres humanos, da
sociedade e do poder político encontra a causa fora e antes dos
próprios humanos e de sua ação, localizando a causa originária nas divindades.
A ideologia propriamente dita surge quando, no lugar das divindades,
encontramos as ideias: o Homem, a Pátria, a Família, a Escola, o Progresso, a
Ciência, o Estado, o Bem, o Justo, etc.
Com isso, podemos dizer que a
ideologia é um fenômeno moderno, substituindo o papel que, antes dela, tinham
os mitos e as teologias. Com a ideologia, a explicação sobre a origem dos
homens, da sociedade e da política encontra-se nas ações humanas, entendidas
como manifestação da consciência ou das ideias. Assim, por exemplo, julgar que
o Estado se origina das ideias de Estado de Natureza, direito natural, contrato
social e direito civil é supor que a consciência humana, independentemente das
condições históricas materiais, pensou nessas ideias, julgou-as corretas e
passou a agir por elas, criando a realidade designada e representada por elas.
Que faz a ideologia? Oferece a
uma sociedade dividida em classes sociais antagônicas, e que vivem na forma da
luta de classes, uma imagem que permita a unificação e a identificação social –
uma língua, uma religião, uma raça, uma nação, uma pátria, um Estado, uma
humanidade, mesmos costumes. Assim, a função primordial da ideologia é ocultar
a origem da sociedade (relações de produção como relações entre meios de
produção e forças produtivas sob a divisão social do trabalho), dissimular a
presença da luta de classes (domínio e exploração dos não-proprietários pelos
proprietários privados dos meios de produção), negar as desigualdades sociais
(são imaginadas como se fossem conseqüência de talentos diferentes, da preguiça
ou da disciplina laboriosa) e oferecer a imagem ilusória da comunidade (o
Estado) originada do contrato social entre homens livres e iguais. A ideologia
é a lógica da dominação social e política.
Porque nascemos e somos criados
com essas ideias e nesse imaginário social, não percebemos a verdadeira
natureza de classe do Estado. A resposta à segunda pergunta de Marx, qual seja,
por que a sociedade não percebe o vínculo interno entre poder econômico e poder
político, pode ser respondida agora: por causa da ideologia.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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