Dificuldades para a democracia no Brasil
Periodicamente os brasileiros
afirmam que vivemos numa democracia, depois de concluída uma fase de
autoritarismo. Por democracia entendem a existência de eleições, de partidos
políticos e da divisão republicana dos três poderes, além da liberdade de
pensamento e de expressão. Por autoritarismo, entendem um regime de governo em
que o Estado é ocupado através de um golpe (em geral militar ou com apoio
militar), não há eleições nem partidos políticos, o poder executivo domina o
legislativo e o judiciário, há censura do pensamento e da expressão (por vezes
com tortura e morte) dos inimigos políticos. Em suma, democracia e
autoritarismo são vistos como algo que se realiza na esfera do Estado e este é
identificado com o modo de governo.
Essa visão é cega para algo
profundo na sociedade brasileira: o autoritarismo social. Nossa sociedade é
autoritária porque é hierárquica, pois divide as pessoas, em qualquer
circunstância, em inferiores, que devem obedecer, e superiores, que devem
mandar. Não há percepção nem prática da igualdade como um direito. Nossa
sociedade também é autoritária porque é violenta (nos termos em que, no estudo
da ética, definimos a violência): nela vigoram racismo, machismo, discriminação
religiosa e de classe social, desigualdades econômicas das maiores do mundo,
exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem prática do direito à
liberdade.
O autoritarismo social e as
desigualdades econômicas fazem com que a sociedade brasileira esteja polarizada
entre as carências das camadas populares e os interesses das classes abastadas
e dominantes, sem conseguir ultrapassar carências e interesses e alcançar a
esfera dos direitos. Os interesses, porque não se transformam em direitos,
tornam-se privilégios de alguns, de sorte que a polarização social se efetua
entre os despossuídos (os carentes) e os privilegiados. Estes, porque são
portadores dos conhecimentos técnicos e científicos, são os “competentes”,
cabendo-lhes a direção da sociedade.
Como vimos, uma carência é
sempre específica, sem conseguir generalizar-se num interesse comum nem
universalizar-se num direito. Um privilégio, por definição, é sempre
particular, não podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se
num direito, pois, se tal ocorresse, deixaria de ser privilégio. Ora, a
democracia é criação e garantia de direitos. Nossa sociedade, polarizada entre
a carência e o privilégio, não consegue ser democrática, pois não encontra
meios para isso.
Esse conjunto de determinações
sociais manifesta-se na esfera política. Em lugar de democracia, temos
instituições vindas dela, mas operando de modo autoritário.
Assim, por exemplo, os partidos
políticos costumam ser de três tipos: os clientelistas, que mantêm relações de
favor com seus eleitores, os vanguardistas, que substituem seus eleitores pela
vontade dos dirigentes partidários, e os populistas, que tratam seus eleitores
como um pai de família (o despotes)
trata seus filhos menores. Favor, substituição e paternalismo evidenciam que a
prática da participação política, através de representantes, não consegue se
realizar no Brasil. Os representantes, em lugar de cumprir o mandato que lhes
foi dado pelos representados, surgem como chefes, mandantes, detentores de
favores e poderes, submetendo os representados, transformando-os em clientes
que recebem favores dos mandantes.
A “indústria política” – isto é,
a criação da imagem dos políticos pelos meios de comunicação de massa para a
venda do político aos eleitores-consumidores -, aliada à estrutura social do
país, alimenta um imaginário político autoritário. As lideranças políticas são
sempre imaginadas como chefes salvadores da nação, verdadeiros messias
escolhidos por Deus e referendados pelo voto dos eleitores. Na verdade, não
somos realmente eleitores (os que escolhem), mas meros votantes (os que dão o
voto para alguém).
A imagem populista e messiânica
dos governantes indica que a concepção teocrática do poder não desapareceu:
ainda se acredita no governante como enviado das divindades (o número de
políticos ligados a astrólogos e videntes fala por si mesmo) e que sua vontade
tem força de lei.
As leis, porque exprimem ou os
privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos governantes, não são vistas
como expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas coletivas. O
poder judiciário aparece como misterioso, envolto num saber incompreensível e
numa autoridade quase mística. Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade seja,
por um lado, incompreensível, e, por outro, ineficiente (a impunidade não reina
livre e solta?) e que a única relação possível com ela seja a da transgressão
(o famoso “jeitinho”).
Como se observa, a democracia,
no Brasil, ainda está por ser inventada.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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